Mártires da realidade
![]() |
Dez mil mártires, de Jean Bourdichon |
Em 2016, Aaron Ng, de 34 anos, e Wei Li, de 45 anos, estavam dirigindo pela Califórnia com suas esposas e filhos numa mini-van, no que deveria ser o começo de uma viagem de férias. Às 3 da manhã, seu veículo sofreu um pequeno choque na rodovia com uma BMW. Os motoristas de ambos os veículos pararam na beira da estrada, que ficava numa colina, para avaliar os danos e trocar informações. Estavam fora dos respectivos veículos Aaron, Wei e o motorista da BMW. Enquanto conversavam, um caminhão passou pela estrada e atingiu parte da traseira da mini-van que havia ficado para fora do acostamento. O veículo caiu da ribanceira. Aaron e Wei, desesperados, correram para tentar salvar suas famílias, mas devido ao estrago, as portas ficaram emperradas e os ocupantes, machucados mas vivos, ficaram presos às ferragens.
A polícia rodoviária chegou rápido e tentou ajudá-los, mas a mini-van começou a pegar fogo. As chamas logo consumiram todo o veículo. Com as esposas e crianças berrando de dor, Aaron e Wei ignoraram os apelos dos policiais para saírem de perto e continuaram tentando abrir as portas, sofrendo queimaduras graves em suas mãos e rostos. Porém, não havia nada a ser feito. Os policiais tiveram que contê-los à força para que não se ferissem ainda mais. As duas mulheres e quatro crianças dentro da mini-van, que sofreram algumas fraturas pela queda na ribanceira, morreram queimadas ao longo de minutos agonizantes dentro de uma gaiola de metal contorcida. Foi como uma cena de filme de terror, daqueles mais grotescos e apelativos, porém na vida real, com pessoas reais e dores reais.
Esse caso me impressionou bastante, ao ponto de mencioná-lo no livro Procissão de Dor, que publiquei em 2023. A realidade é brutal mesmo, não tem para onde corrermos. E esse tipo de coisa acontece o tempo todo. Em 2020, em Mumbai, um menino de 5 anos chamado Mohammed Sheikh estava saindo com suas irmãs de um elevador de porta pantográfica manual. Quando ele se voltou para fechar a porta pantográfica, suas irmãs fecharam a porta de acesso ao elevador, prendendo ele no curto espaço entre as duas portas. Era para ser uma brincadeira. Naquele momento, porém, um vizinho chamou o elevador de um andar superior, o que fez com que o menino fosse arrastado pela parede do poço. Rapidamente, o arrasto fez com que seu corpo fosse esmagado e sua cabeça explodisse no pequeno vão entre o chão do elevador a parede. Seu corpo mutilado foi encontrado no poço.
Você pode estar aproveitando um dia de descanso e sofrer um acidente vascular cerebral, ou infarto, e simplesmente apagar. Pode tomar um tiro que era destinado à outra pessoa, ou quem sabe, a você mesmo. Pode ser esfolado vivo por suas crenças por um governo ou por grupos de fanáticos assassinos. Ou quem sabe, um dia, você pode acordar e não conseguir calçar os sapatos por ter visão dupla e três semanas depois uma biopsia revelar que a massa no seu cérebro era um glioblastoma multiforme, tumor ultra-agressivo, quase sempre de origem idiopática. Foi isso que ocorreu com minha prima, Juliana. A sobrevida em média sem cirurgia e tratamento rádio e quimioterápico intenso é de 3 meses. Já a sobrevida média para quem faz a cirurgia e tratamento é de 1 ano e meio. Minha prima morreu 7 meses depois dos primeiros sintomas, tendo feito cirurgia e tratamento.
Todas essas coisas podem não acontecer com você, mas com as pessoas mais próximas e que você espera ver logo mais. Por isso digo: abracem-se e tentem ser bons uns com os outros.
Nunca sabemos quando nossas mães tropeçarão na calçada de um ponto de ônibus bem na hora que ônibus estiver chegando e ter toda a sua face esmigalhada por várias toneladas de transporte público. Esse tipo de ocorrência é relativamente comum no Rio de Janeiro e em outras metrópoles mundo afora. Mães, avôs, cônjuges, filhos, que eram esperados logo mais para um bolo ou um jantar, esmagados e estraçalhados pela vida. Há aqueles que se apagam por vontade própria, também, não suportando mais suas próprias vidas. Outros são apagados por outros humanos em nome de ganhos materiais, ou em nome de algo intangível, ou por pura maldade humana mesmo. E não basta morrermos, temos que sofrer muito, mártires da realidade, com uns sofrendo mais do que outros. A vida animal, presenteada pela natureza com nociceptores, tirou o bilhete premiado da dor. Há uma escala de dor entre eles, claro, com os animais mais basais sofrendo menos do que animais com sistemas nervosos mais complexos.
Mas todos eles sofrem e morrem.
Aliás, toda a vida sofre e morre; parte dela, vegetais, fungos e seres unicelulares, apenas têm a sorte de não terem sistemas nervosos que traduzem o desconforto e estímulos negativos como dor. Mas o incômodo e a morte reinam a vida. A morte é tão fundamental à vida que é patético ver entusiastas da tecnologia acreditando que um dia poderemos viver eternamente através de novas descobertas científicas. A vida pode ser estendida, sim, mas não eternamente. Não acontecerá. Nunca. Estrelas morrem. A nossa morrerá, também, levando consigo qualquer possibilidade de haver vida aqui. Não adianta nos mudarmos para outro lugar no universo, já que ele próprio morrerá. Será no futuro distante, mas morrerá. Ao comentar numa postagem minha no YouTube, uma pessoa trouxe um aforismo fantástico do escritor libanês Khalil Gibran que cabe muito bem aqui.
O aforismo está no livro Areia e Espuma:
Disse à vida: “Gostaria de ouvir a morte falar.”E a vida ergueu a voz um pouco mais alto, e me disse: “Estás ouvindo-a agora.”
A sorte de todos os outros seres que possuem sistemas nervosos, isto é, de todos os outros animais, é viver no eterno presente, num estado de instinto ou de pouca consciência. Já nós temos sistemas nervosos mais complexos que nos habilitam a conhecer passado, presente e futuro, ainda que não saibamos prever cada detalhe do que ocorrerá no futuro. Todos nós somos equipados com mentes que podem atingir um alto grau de lucidez. A sorte da espécie é que, embora a nossa consciência tenha a capacidade de atingir um alto grau de lucidez, a maioria não o alcança. E mesmo aqueles de nós que o alcançam não permanecem o tempo todo nele, ainda bem. A lucidez em alto grau não é um lugar que se habita por muito tempo sem que se abra mão da própria vida. Não aguentamos. Isso me faz pensar na razão pela qual gosto de estudar e falar sobre essas coisas, o porquê de pregar lucidez e desespero, como escrevi no meu último texto. É que isso tudo teve um efeito positivo em minha vida. É paradoxal, mas foi o que aconteceu.
Passei 30 anos martelando na minha cabeça a noção comum de que a vida é boa e qualquer problema que tivesse com ela não era culpa da vida, mas culpa minha, ou culpa dos outros, ou culpa do sistema, ou qualquer outra coisa que pudesse ser alterada, pelo menos a princípio. Sim, uma gigantesca parcela dos nossos problemas vem de nós mesmos, dos outros e dos sistemas que estamos inseridos. Essa parcela pode, a princípio, ser alterada, com certeza. A história humana mostra isso claramente. Se a culpa é minha, posso mudar a mim mesmo. Se a culpa é dos outros ou do sistema, posso reagir. Mas essas são coisas da vida, não a vida em si. Eu falo da vida em si. E quanto a ela? E quanto a ser gerado e parido sem que você jamais pudesse consentir, apenas para vivenciar um mundo onde aquilo que move todas as criaturas é o desconforto, a dor e a falta, algo que acontece independentemente dos sistemas, dos outros ou de nós mesmos?
No discurso corrente da internet, muito se fala de “sair da Matrix”. Fala-se de pílulas de cores diferentes. Eu nunca usei esses termos em nenhum de meus textos e falas e vou explicar por quê. Por mais que tenha sido reinterpretado de diversas formas por fãs e até mesmo pelos criadores, o filme Matrix de 1999, por admissão dos criadores à época, foi altamente influenciado pelos mitos gnósticos dos séculos II ao III, que por sua vez foram bastante influenciados pelo platonismo e pelo neoplatonismo. Dentro dos humanos estariam almas aprisionadas no mundo da matéria, um mundo de faz-de-conta onde se sofre e onde não se é realmente livre. O que são os agentes no filme se não representações dos arcontes, servos do demiurgo que mantém os humanos presos nas diferentes mitologias gnósticas?
Pois bem. A ideia filosófica mais básica por trás disso tudo é o desvelar de uma verdade geralmente não aceita pela maioria das pessoas. Daí o abuso da terminologia do próprio filme para descrever situações diversas de desvelamento ou de suposto desvelamento. Mas não há realmente nenhuma Matrix da qual sair. Embora eu goste dos gnósticos, e também os dármicos que tratam o devir como samsara, penso que há só devir. Mesmo que seja manifestação de alguma realidade fundamental, como a Vontade, essa realidade fundamental é imanente ao mundo e somos, também, manifestações dessa mesma coisa. Somos parte da prisão que nos cerca. O prisioneiro e a prisão são feitos da mesma coisa. É poético considerar que nossa essência mais íntima foi aprisionada no mundo da matéria por um deus mau e que podemos nos libertar através do conhecimento, mas é apenas isso, poético, nada mais. O Neo do mundo real não está preso numa Matrix, ele faz parte dela, pois ela é tudo o que há. Podemos mudar, lutar e nos debater o tanto quanto quisermos dentro dela, mas nunca saímos de lugar algum, exceto talvez para o nada que nos aguarda.
Se a ideia de não haver escapatória lhe parece horripilante, é porque ela de fato é. É a horripilante verdade de que somos fruto do acaso, de uma seleção natural cega, assim como as baratas que se amontoam no bueiro que fica na frente da nossa casa. Assim como nós, elas se adaptaram biologicamente através das eras para lá viverem. Existimos, sofremos e morremos sem mais, nem porquê; mesmo as esposas e filhos de Aaron Ng e Wei Li, que morreram queimadas e em considerável dor, que descansem em paz. Nesta canoa furada em que fomos colocados, fomos enganados. Não fomos enganados por algum demiurgo maligno, mas pelo próprio acaso natural que produziu uma mente que cria e projeta significados profundos e elaborados nas coisas, inclusive naquelas que têm zero significado. Buscamos culpados para as nossas tragédias, e muitas vezes eles existem, mas por mais que consigamos justiça contra eles, eles também são vítimas e, no final, o responsável por tudo, o cosmos, não pode ser preso.
Então ficamos com as nossas poesias, os nossos mitos, porque eles nos confortam. Confortam a mim, por exemplo, mesmo sabendo que eles não são de verdade, pelo menos não no mesmo sentido que esta tecla que digito é de verdade, ou no mesmo sentido que o pobre menino esmagado pelo elevador e o próprio elevador foram de verdade, no mesmo sentido que a minha morte um dia será de verdade. É o que nos resta.
O flerte com a lucidez me ajudou bastante a entender que não sou uma peça defeituosa num mundo maravilhoso, mas uma peça normal dentro de um mundo que opera sob leis insidiosas e que não está nem aí para o conforto e felicidade dos seres que têm o azar de nele habitarem. Gosto de escrever e falar sobre isso porque penso que pode ajudar outras pessoas, também. Mas a lucidez não é um estado que recomendo que fiquem o tempo inteiro. Tomem cuidado, utilizem ela com cautela, ou vocês enlouquecerão. Ela é como todo remédio: em doses certas, cura, em doses exageradas, torna-se veneno.
por Fernando Olszewski