Precisamos falar sobre o antinatalismo... de novo
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Distração, de Erik Thor Sandberg |
Há oito anos atrás, eu escrevi e publiquei um texto no meu blog intitulado Precisamos falar sobre o antinatalismo, no qual explicava de forma bem básica o que era o antinatalismo. Inclusive já dava para ver ali um pouco do interesse que me levaria a estudar mais a relação entre a filosofia das religiões e o pessimismo filosófico, principalmente a forma contemporânea que ele tomou em Arthur Schopenhauer e Emil Cioran. No meio do ano passado, em 2024, defendi a minha dissertação, com o título Pessimismo e Gnose: Schopenhauer, Cioran e a apropriação das religiões anticósmicas, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Uma das coisas que pude notar em toda a academia, não só nas humanidades mas também nas ciências naturais, é que ajuda muito estudar assuntos que nos interessam. Ajuda mais ainda estudar assuntos que não apenas nos interessam, mas pelos quais temos um interesse pessoal investido, seja ele qual for. Porém, basta termos um interesse, sem a necessidade de haver envolvimento pessoal com o objeto de estudo. No meu caso, tenho um grande interesse intelectual e acadêmico no estudo da história e filosofia das religiões, embora eu não tenha religião há praticamente vinte anos. Se fosse praticar alguma hoje em dia, escolheria o budismo, seja theravada ou mahayana, mas seria pela metáfora e não por acreditar de verdade no sobrenatural.
Já meu interesse no pessimismo filosófico vai além do interesse intelectual e acadêmico. Há aqui um interesse particular, estou mais envolvido com objeto, pois ele se relaciona com a forma como enxergo o mundo, a vida, a existência. Tanto é o caso que, excetuando fatos científicos e históricos, o meu blog, o Exilado Metafísico, jamais pretendeu trazer uma visão supostamente imparcial ou meramente educacional em termos filosóficos. Primeiro porque, apesar da imparcialidade na educação e no jornalismo ser um ideal, ela é como a meritocracia nas sociedades: não existe realmente. Essas coisas podem servir como um norte, mas por mais que se chegue perto, nunca se é totalmente imparcial, assim como nunca é possível se haver uma coletivo humano perfeitamente meritocrático.
Ou seja, no caso dos meus escritos pessoais relacionados à filosofia, nunca busquei passar uma impressão de imparcialidade. Assim como você não verá imparcialidade em outros escritores e divulgadores que seguem esta ou aquela corrente filosófica ou até mesmo política, eu escrevo a partir de uma perspectiva que considero ser a mais correta da realidade. Por mais que acredite genuinamente que estou apresentando a visão das coisas como elas são, entendo que ela é uma entre outras. Aqui eu vendo lucidez e desespero em contraposição à ilusão e contentamento. Tendo dito tudo isso, resolvi abordar o tema do antinatalismo diretamente de novo neste texto, apesar do tópico permear quase que tudo o que escrevo, já que está, ao meu ver, ligado ao pessimismo filosófico em geral.
Há algumas razões pelas quais decidi voltar a abordar o tópico diretamente, todas ruins: nesses anos todos e em especial dos últimos dois ou três anos para cá, li e vi muitas manifestações toscas ou simplesmente mentirosas sobre o que seria o antinatalismo e sobre os interesses por trás daqueles que se dizem antinatalistas. Não que eu ache que vá mudar alguma coisa, seja escrevendo em português ou em inglês sobre isso, mas sinto que preciso colocar para fora algumas coisas e tentar colocar ordem na casa, ainda que certamente eu venha a falhar miseravelmente. Portanto, aqui começo novamente a abordar o tema da forma mais direta e clara possível. Tentarei de forma breve explicar o que é o antinatalismo e alguns erros comuns que vejo sendo propagados.
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Então, o que é antinatalismo?
O termo “antinatalismo” parece ter sido criado pelo filósofo sul-africano, David Benatar, autor do livro Better Never to Have Been: The Harm of Coming into Existence (em tradução livre: Melhor Nunca Ter Sido: o mal de vir à existência), publicado em 2006. Apesar do termo ser recente, a ideia por trás do termo, a ideia defendida por Benatar de que seria melhor nunca termos nascido e que por isso deveríamos nos abster de criar novos seres sofredores, não começou com ele. Sua argumentação através do uso de assimetrias é original e, ao meu ver, brilhante, mas ele próprio escreveu e disse em diversas ocasiões que a ideia é bem antiga, inclusive trazendo o nome de Schopenhauer em algumas entrevistas, além de também mencionar o budismo.
Porém, a ideia de que não ser é melhor do que ser e que por isso devemos nos abster de criar novos seres é uma que surge, ou pelo menos se renova ao redor do mundo, de tempos em tempos. Nas décadas de 1980 e 1990, o filósofo argentino-brasileiro e professor da Universidade de Brasília, Julio Cabrera, começou a propor o que ele chamou de ética negativa, que chega à mesma conclusão de Benatar, de que criar novos seres sofredores é eticamente problemático. Seu projeto de ética negativa culminou no excelente livro Mal-Estar e Moralidade, de 2018, no qual Cabrera expõe detalhadamente a sua filosofia moral. Na virada do século XIX para o século XX, ainda no Brasil, tivemos um dos maiores escritores de todos os tempos utilizando abertamente a filosofia schopenhaueriana da Vontade em seus romances e contos. Falo aqui de Machado de Assis.
A recusa da reprodução do personagem Brás Cubas, que afirma postumamente que não quis transmitir a ninguém o legado da miséria humana, deixa escancarada a sua negação da Vontade. Negar a Vontade de vida que permeia todo o cosmos e usa os seres sensíveis como peças descartáveis é a coroa da filosofia moral de Schopenhauer e Machado de Assis sabia disso. Infelizmente, esse aspecto é quase que completamente ignorado ao se ensinar sobre o autor. E essa está longe de ser a única referência à filosofia de Schopenhauer na obra de Machado, inclusive há outras importantes dentro do próprio Memórias Póstumas de Brás Cubas. Porém, a recusa e a condenação da reprodução certamente são as mais impactantes referências à filosofia pessimista em termos éticos na obra machadiana.
Na Europa continental do século XX, dois dos nomes mais proeminentes relacionados ao pessimismo filosófico foram Peter Wessel Zapffe e Emil Cioran. Para o norueguês Zapffe, a evolução dotou o humano com uma consciência profunda, que não suporta o fato de que ele é uma criatura efêmera entre tantas outras; por isso, o homem consciente ou inconscientemente busca alienar-se de diversas maneiras. Entretanto, Zapffe diz que nenhuma das suas alienações é capaz de curá-lo e que o melhor é abandonar a existência recusando trazer novos sofredores para uma realidade sem sentido e dolorosa. Já o franco-romeno Cioran escreveu em diversos ensaios e aforismos que a consciência humana é um erro de percurso da natureza. Para ele, mesmo os graus mais diminutos de consciência animal são capazes de fazer com que a criatura sofra.
O ideal, para Cioran, seria um mundo habitado no máximo por vegetais, ou melhor ainda, por minerais. A própria vida seria um erro da matéria inorgânica, segundo ele escreve. Cioran, assim como como Schopenhauer, foi um grande admirador dos gnósticos, maniqueus, bogomilos, cátaros, budistas e das religiões dármicas em geral. Todas essas podem ser vistas, em essência, como religiões anticósmicas, embora haja muita variedade, em especial nas religiões dármicas que sobrevivem até os nossos dias, como o budismo, o bramanismo e o jainismo. O importante, para Schopenhauer e Cioran, é que todas essas religiões tratavam o nascimento como um mal do qual devíamos escapar através de determinadas práticas religiosas — caso contrário, corríamos o risco de ficar presos eternamente nos reinos infernais ou na própria Terra, reencarnando sucessivamente.
Vale deixar claro que nem Schopenhauer, nem Cioran acreditavam realmente nessas religiões. Para ambos, elas chegavam perto da verdade apenas como metáforas. Mesmo no caso de Schopenhauer, que postulava haver um Vontade metafísica que serve de fundamento para toda a realidade empírica, as religiões anticósmicas eram vistas como doutrinas da fé. Ele as contrapunha com a doutrina da persuasão, isto é, a filosofia, que seria aquela doutrina que utiliza a razão para chegar à verdade sem o auxílio de metáforas e mitos, tal como fazem as religiões que ele considerava como sendo as mais corretas.
Apesar de ser um marco para o conceito de pessimismo cósmico, filosofias pessimistas precedem Schopenhauer não apenas em séculos, mas milênios. Na Síria do século X, durante a era de ouro do islã, um pensador e poeta chamado Abu Al-Ala Al-Maa'rri escreveu sobre como os profetas das religiões eram todos farsantes e que nascer era o infortúnio original na vida de todos os homens. Em sua tumba, foi fixado um de seus ditos que no qual afirmava que ele não cometeu com ninguém o crime que seu pai cometera com ele ao trazê-lo ao mundo. Mas a ideia de que não-ser é superior a ser e que nascer é o acontecimento mais terrível é bem mais antiga.
Na antiguidade clássica, época em que a filosofia e a religião quase sempre andavam juntas, vemos ela aparecer na Grécia, no Levante e na Índia com maior ou menor intensidade. Mais de 400 anos antes de Cristo, temos exemplos distintos e claros dessa ideia. Numa passagem da peça Édipo em Colono de Sófocles, o coro anuncia que o melhor é não nascer e, quando se nasce, o melhor é voltar o quanto antes para escuridão. No Levante, o autor do livro bíblico do Eclesiastes escreveu que melhor do que os oprimidos são aqueles que já morreram, e que melhor do que ambos os oprimidos e os mortos é aquele nunca nem nasceu, pois não viu o mal que se comete debaixo do sol.
Por volta da mesma época, na Índia, Sidarta Gautama, o Buda, afirmou aos seus discípulos que o nascimento é a origem de todo o sofrimento. Mahavira, o fundador do jainismo e contemporâneo do Buda, afirmou o mesmo. Ambos vinham de um meio cultural influenciado pela religião védica, o hinduísmo antigo, que naquela altura já postulava a crença de que reencarnamos até finalmente atingir o moksha, a iluminação, momento a partir do qual a nossa essência retornaria ao Brahman, o indiferenciado, a realidade primeira e última da qual tudo emana. Essas noções, embora não estivessem nos Vedas mais antigos, está presente nos Upanishads, que compõem os textos védicos tardios. É importante lembrar que tanto Buda, quanto Mahavira, faziam parte de movimentos heterodoxos dentro do pensamento hindu, visto que eles não se subordinavam a autoridade dos Vedas.
Já nos séculos I e II da nossa era, alguns dos primeiros cristãos começaram a interpretar o nascimento como um aprisionamento do espírito no mundo da matéria. Eles passaram a praticar o ascetismo, tal qual faziam os gimnosofistas vindos da Índia até o Ocidente. Para esses cristãos, Jesus foi enviado por um Deus que está acima do deus criador do universo físico, o demiurgo. Marcião, nascido no final do século I e reconhecido como sendo o primeiro cristão a tentar formular um cânone do Novo Testamento, foi um dos que propagaram essa crença.
Os gnósticos barbeloítas e valentinianos acreditavam na mesma coisa. É muito importante lembrar que tais grupos, a princípio, não viviam separados do cristianismo primitivo. Valentino, líder dos gnósticos valentinianos, chegou a ser cotado para bispo de Roma. Ou seja, por pouco um gnóstico não foi um dos primeiros papas. Mesmo entre os cristãos proto-ortodoxos, a ideia da rejeição do mundo da matéria como uma prisão esteve presente, visto que passagens dos Evangelhos sinóticos tratam a respeito disso, como Mateus 19:10-12. Algumas das epístolas dos apóstolos também lidam com o assunto, como 1 João 2:15-17. O apóstolo Paulo também trata da superioridade do princípio ascético em 1 Coríntios 7.
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Ou seja, apesar do termo antinatalismo surgir com, ou pelo menos ser popularizado por David Benatar, ele remonta a ideias filosóficas e religiosas muito antigas que consideram a vida sensível como sofrimento. O nascimento é visto como a raiz do sofrimento e, portanto, moralmente condenável. Mas isso é apenas uma visão geral da coisa. Quais são os argumentos dado pelos filósofos pessimistas e antinatalistas para sustentar a noção de que o nascimento é algo negativo e moralmente condenável? Muitos. Vou resumir aqui o argumento de três filósofos que considero indispensáveis para o tema: Arthur Schopenhauer, Julio Cabrera e David Benatar. Outros pensadores mencionados, como Cioran e Zapffe, também são importantes, mas penso que os três que irei resumir melhor provêm alguns dos argumentos mais sólidos num sentido sistemático.
Para Schopenhauer, toda a realidade empírica é representação da Vontade. Tudo, desde as leis da física, até os seres vivos mais complexos, são individuações desse mesmo princípio metafísico. A Vontade não é racional e nem possui um fim último. Ela é sede pura de manifestação. O universo se organiza da maneira que se organiza porque, para se manifestar, a Vontade vai de graus mais simples e generalizados, para graus mais complexos e específicos. Quando ela começa a se individuar em seres sensíveis, isto é, nos animais, surge a dor. Da mesma forma que no mundo inorgânico há atritos, no mundo orgânico eles também estão presentes. E, entre os seres vivos, a Vontade também se manifesta nos animais, seres dotados da capacidade de sentir prazer, dor e tédio — e que inclusive são movidos por esses estados, sendo a dor e o tédio os principais deles. Os prazeres e alegrias existem apenas quando conseguimos afastar temporariamente a dor e o tédio. Ao se manifestar de formas cada vez mais complexas, a Vontade chega chega na representação humana, vontade-de-saber.
No ser humano, a Vontade cega gera um ser capaz de entender todo esse processo e perceber que ele é vazio de um sentido último. O humano também é capaz de sentir profundamente e ter empatia com todos os outros seres sensíveis, reconhecendo-se neles e como parte de toda existência. Sendo assim, ele tem a capacidade de compreender que aquilo que machuca o outro, machuca a ele próprio. Dado o entendimento que existir sempre causa sofrimento para ele e para outros, ele é capaz de concluir que, para ser verdadeiramente ético, precisa negar sua própria vontade. É negando sua vontade que o humano consegue doar-se para os outros, tornando-se ético. No final, a atitude mais ética que podemos ter é negar totalmente a vontade dentro de nós, recusando-nos a adicionar mais dor ao mundo. A negativa da reprodução é uma expressão da negação da Vontade na filosofia de Schopenhauer.
Já segundo Cabrera, ao passarmos a existir, ganhamos um ser decrescente ou minguante, pois começamos a acabar logo após o nosso surgimento. A morte é apenas o final desse processo de acabamento. Desde o momento em que passamos a existir, sofremos três tipos de atritos: dores físicas, desânimo ou dores mentais, e agressão de todos os tipos por parte de outros humanos que são, eles próprios, também afetados pelos três tipos de atrito. Para se defender dos atritos e do seu ser decrescente, o humano precisa constantemente criar valores positivos. Esses valores amenizam ou o fazem ele esquecer o seu ser decrescente e atritado. São, em suma, as ilusões que criamos para dizer que está tudo bem existir num universo que, para seres sensíveis, é intrinsecamente ligado ao sofrimento e terminalidade.
Mesmo que busquemos agir eticamente, acabamos pisando no pé de outros humanos e outras criaturas sensíveis pelo simples fato de existirmos. Ao mesmo passo que sofremos atritos, somos parte do atrito dos outros, por mais que tentemos não ser. Cabrera considera até mesmo a incapacidade de agir para ajudar todos ao nosso redor como sendo parte da nossa inabilitação moral. É portanto impossível ser totalmente moral quando existimos. Partindo desses pressupostos, criar um novo ser atritado é moralmente reprovável. Cabrera contrapõe a ética negativa com as éticas positivas. Na ética negativa, há uma desvalia em existir, enquanto que todas as éticas positivas tratam a existência como algo positivo ou, pelo menos, neutro.
Por último, temos o argumento da assimetria de Benatar. Segundo ele, há uma assimetria crucial entre estados positivos e negativos que faz com que nunca ter existido seja sempre preferível para um ser em potencial. Por exemplo, pensemos num casal que pensa em ter um filho. Chamemos ele de João. Segundo Benatar, caso João nunca venha a existir, João não experimentará estados positivos, e isso, para Benatar, não é ruim, visto que não haverá um João que sentirá falta desses estados positivos. Entretanto, no mesmo cenário em que João nunca passou a existir, ele também não experimentará estados negativos e, ao contrário do que ocorre anteriormente com os estados positivos, Benatar afirma que isso é bom, mesmo não havendo ninguém para se beneficiar.
O argumento de Benatar está assentado na ideia de que, apesar de estados positivos não fazerem falta para alguém que nunca existiu, sempre é bom quando estados negativos não machucam alguém, ainda que esse alguém nunca tenha existido em primeiro lugar. No cenário em que João nunca veio ao mundo, ele não prova comidas deliciosas, é verdade, mas como não ele nunca existiu, não sente falta dessas comidas. Contudo, ele também não está exposto a catástrofes, violência, doenças, privações, pobreza e toda sorte de estados negativos, e Benatar sustenta que isso é bom mesmo não havendo ninguém ali para se sentir a salvo dessas desgraças. Outro exemplo que podemos dar é o seguinte: é bom que não existam guerras e genocídios em Marte, apesar de marcianos não existirem; entretanto, o fato de que não existem marcianos para sentir os prazeres efêmeros da vida não é não é ruim.
Como resume o escritor Thomas Ligotti em The Conspiracy Against the Human Race (em tradução livre: A Conspiração Contra a Raça Humana):
O credo do pessimista, ou um deles, é que a inexistência nunca fez mal a ninguém e a existência faz mal a todos. Embora nós mesmos possamos ser criações ilusórias da consciência, nossa dor é, ainda assim, real.
No caso de todos esses pensadores, a questão do sofrimento não se aplica somente aos humanos, mas a todos os seres sensíveis, todos aqueles que conseguem sentir estímulos negativos como dor, sofrimento e tédio. Absolutamente todos os seres capazes de sentir algum tipo de dor são machucados ao passarem a existir. Contudo, para simplificar, já que só o ser humano é capaz de ponderar sobre questões morais, foca-se apenas nele. Mas todos os filósofos que mencionei — Schopenhauer, Cioran, Zapffe, Cabrera e Benatar — tocam na questão do sofrimento animal e como eles, assim como nós, experimentam as desgraças que fazem parte da existência sensível. É aqui que penso ser importante abordar algumas interpretações ruins ou claramente mentirosas sobre o antinatalismo.
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Se antinatalismo é a posição ética que considera o nascimento, isto é, passar a existir, como sendo algo negativo para o ser dado o sofrimento inerente à existência, então o que não é antinatalismo? Antinatalismo não é controle de natalidade. Enquanto que é possível forçar uma interpretação estreita do termo afirmando que antinatalismo é apenas a ideia de que o nascimento é negativo independentemente das razões que se dê para considerá-lo como negativo, isso ignora toda a história por trás do termo. Mas termos possuem história e significados que não podem ser ignorados para satisfazer quem deseja criticá-los. Logo, a política de um filho imposta pela China entre 1980 e 2015, por exemplo, embora louvável do ponto de vista demográfico, não é antinatalismo.
Antinatalismo também não é a esterilização de determinadas populações e pessoas por elas serem consideradas indesejáveis, como ocorreu, por exemplo, em algumas ditaduras sul-americanas do século XX que esterilizavam mulheres indígenas, além do exemplo mais famoso que foi a Alemanha nazista. O nome disso é eugenia, um conceito muito bem estudado e que não tem absolutamente nada a ver com o pessimismo filosófico e com o antinatalismo. A pseudociência grotesca da eugenia também não é a mesma coisa que controle de natalidade, apesar dos conceitos serem misturados por críticos do antinatalismo que não fazem a menor ideia do que estão falando. Infelizmente, porém, em ambos os casos, vejo uma tentativa recente de associação feita por algumas pessoas que não têm a menor boa vontade para sequer ler o básico sobre o tema.
Ao associarem a crítica à eugenia, crítica com a qual eu concordo, à crítica que fazem ao controle de natalidade, muitos têm fabricado ou exagerando o perigo do que chamam de “ecofascismo”, muito embora a vasta maioria dos fascistas de verdade jamais ligou a mínima para o meio ambiente. Essa crítica quase que exclusivamente vem de setores políticos de esquerda. Boa parte ou a maioria deles enxergam a República Popular da China como a grande esperança e bastião da civilização humana. Porém, esquecem-se, ou fingem não saber que a China foi e ainda é a maior promotora de políticas de controle de natalidade no planeta, e com toda a razão. Esquecem-se, também, que tal controle de natalidade não tem a ver eugenia, mas com questões demográficas importantes relacionadas a consumo de recursos, algo que todos no Ocidente hoje em dia fingem que não é um problema, sejam fascistas, comunistas ou capitalistas.
Entretanto, nem tudo são flores entre todos aqueles que se denominam antinatalistas ou simpatizam com a filosofia. Há alguns anos atrás, surgiram na América do Norte antinatalistas que se denominam efilistas. Efilismo é um neologismo. Em inglês, é derivado da palavra vida escrita ao contrário: efil é life escrito ao contrário. Os efilistas consideram que o antinatalismo não vai longe o suficiente por focar somente nos humanos. Pessoalmente, vejo isso como um problema do pensamento anglo-saxão, que é demasiadamente pragmático, categorizador e avesso a qualquer ideia de fluidez. Schopenhauer, Cabrera, Benatar, Cioran, Zapffe e diversos outros pensadores que fundamentam a filosofia do antinatalismo jamais ignoraram o sofrimento animal. O foco no humano existe apenas por questões práticas e por conta do humano ser o único entre os seres sensíveis a fazer filosofia.
Contudo, a mais importante questão no discurso efilista não está limitada à filosofia moral, mas à prática social e política. É nesse meio online que antinatalistas e efilistas deixaram de discutir filosofia e abraçaram os termos como ideais sociais e até políticos. Para muitos deles, esses não são meros posicionamentos éticos, mas ideologias que requerem ação para alcançar a vitória. Entre alguns, promove-se um discurso negativo e raivoso sobre aqueles que são pais e mães. Embora eu entenda de onde vem a frustração e até mesmo a raiva, discordo do método e até mesmo dos objetivos, visto que considero eles como impraticáveis. O antinatalismo, como ideal social ou político, é para mim uma causa perdida. Mas por que sou adepto de um posicionamento ético que trato como causa perdida quando aplicado a um contexto social ou político maior? Vou explicar nos próximos parágrafos.
Entre alguns antinatalistas e entre efilistas na internet há um argumento histórico que volta e meia vi sendo utilizado. Eles trazem o exemplo da escravidão. Segundo eles, durante a época da escravidão, não bastava dizer “eu me recuso a ter escravos, é moralmente errado”. Era necessário, eles apontam corretamente, se opor à escravidão como instituição, atacando os donos de escravos, seja com palavras, tentando conscientizar, seja em ação violenta. Tudo isso é correto e concordo com eles. Entretanto, embora seja uma analogia aparentemente razoável, há uma diferença gigantesca não apenas de grau, mas de natureza entre o mal da escravidão e o mal do nascimento.
Sendo bem schopenhaueriano, argumento o seguinte: os escravos, assim como todos os seres sensíveis, eram manifestações da Vontade e buscavam afirmá-la, como a vasta maioria dos seres faz. Libertos, eles continuaram querendo afirmar. Certamente houve, aqui e ali, escravos que negaram a vontade dentro de si ao ponto de se recusarem a gerar novos sofredores, mas a regra de toda a vida, de todo mundo como representação, é afirmar a vontade. Utilizando o linguajar de Cabrera: os escravos, assim como todos os outros humanos, desenvolveram valores positivos para sobreviver e continuar tocando a vida, pois, assim como todos os outros seres vivos, foram programados pela natureza para sobreviver e se reproduzir.
A escravidão, seja na antiguidade, seja a escravidão dos africanos nas Américas, nunca foi uma unanimidade. Muitos apoiavam e consideravam natural, sim, mas muitos se opuseram. Num determinado momento, aqueles que se opuseram venceram e fizeram com que a prática fosse não apenas imoral, mas ilegal. Já a reprodução existe desde o primeiro organismo unicelular, que existiu há mais de 4 bilhões de anos atrás. Ela é intrínseca à vida. Como falei, creio que há uma diferença de grau enorme, mas não só, há uma diferença de natureza entre o mal do nascimento e todos os outros males. Sim, o nascimento, no sentido de passar a existir, é a condição necessária para todo sofrimento. Mas dado que a reprodução é a coisa mais natural que qualquer organismo pode tentar fazer, considero ser totalmente falha a noção de tratar o posicionamento antinatalista como uma ideologia política capaz de vencer a batalha de ideias com outros ideais.
Quando escrevo que a reprodução é a coisa mais natural que qualquer organismo pode tentar fazer, não trato isso de forma positiva. Penso, assim como Cioran, que a vida é um erro da matéria, e que a consciência é um erro da vida. A reprodução é a coisa mais natural que um organismo pode fazer, sim, mas ser natural nunca deveria servir de parâmetro para algo ser considerado por nós como positivo ou negativo. Vírus e bactérias são naturais e mesmo assim nos medicamos contra eles. Ser devorado por um tubarão branco na costa da Austrália ou da África do Sul é natural, mas evitamos nadar em águas infestadas por tubarões.
Apenas tento mostrar o quão absurdamente difícil é querer se opor a algo tão basal para os organismos quanto a reprodução. Mesmo muitas das pessoas que entendem e concordam com os argumentos pessimistas em relação à reprodução ainda assim se reproduzem, porque argumento nenhum é capaz de vencer o dia contra a brutal realidade da vontade que anima tudo aquilo que existe. Ela anima até mesmo nós, os pessimistas e antinatalistas.
Porém, não é porque penso que o antinatalismo como causa social ou política é uma causa perdida que considero em vão a minha defesa do posicionamento ético. Tenho plena certeza que, localmente, entre indivíduos e grupos, é perfeitamente possível influenciarmos, aqui e ali, a mentalidade de muita gente. Afinal, foi assim que eu e tantos outros que conheço foram convencidos da posição. Quem sabe, assim, não convencemos mais e mais pessoas com o tempo, até convencermos quase todas as pessoas? O que não acredito que irá ajudar a convencer as pessoas de que criar novos seres sensíveis é sempre moralmente problemático são discursos hostis contra os que são pais e ações violentas.
E por falar em ações violentas, há algumas semanas atrás, um rapaz chamado Guy Bartkus se explodiu em frente a uma clínica de fertilização nos Estados Unidos, matando a si próprio e deixando feridos. Ele deixou para trás um manifesto no qual ele mencionava o efilismo e o antinatalismo. Isso, contudo, não foi o estopim para sua ação violenta, algo que até alguns críticos do antinatalismo observaram, como Katherine Dee. Bartkus já possuía severos problemas psiquiátricos que foram exacerbados pelo suicídio recente de sua melhor amiga. De qualquer forma, mesmo não sendo os principais motivos, sua ação não ajuda em nada na percepção de que o antinatalismo é algo razoável. Inclusive, seria risível comparar sua ação com a de abolicionistas que machucavam ou até mesmo matavam donos de escravos para libertá-los.
Porém, críticos do antinatalismo aproveitaram esse ato terrível para culpar até mesmo David Benatar, que nada teve a ver com a história. Só esqueceram de mencionar que, em seu manifesto, Bartkus também menciona como o veganismo, o pró-mortalismo e o utilitarismo negativo influenciaram a sua visão de mundo, além do efilismo e do antinatalismo. Pró-mortalismo, por exemplo, é a posição que considera positiva a morte daqueles que já estão vivos, algo que Benatar desde seus primeiros escritos deixa claro não defender.
O fato é que, mesmo que fosse o próprio Benatar que tivesse se explodido na frente da clínica de fertilização, acusar o pessimismo filosófico e o antinatalismo como ideários intrinsecamente violentos e que devem ser condenados demonstra um alto grau de hipocrisia da parte de seus acusadores. Isso porque filosofias afirmadoras da vida, religiões diversas e ideologias políticas positivas foram e são responsáveis, se não pela maior parte da violência ao longo da história humana, por parte considerável dela. Ideais políticos, religiosos e filosóficos que afirmam o valor da vida e da existência possuem um terrível histórico de violência e criação de estruturas opressivas de controle. De estados teocráticos e totalitários, até pequenos grupos de extremistas, a violência sempre foi uma das principais ferramentas daqueles que afirmam o valor da vida e a consideram sagrada. Opositores e indivíduos considerados como indesejáveis foram torturados e mortos por eles justamente para que a vida pudesse florescer.
Mesmo nos gulags soviéticos e nos campos de extermínio nazistas havia o pressuposto de que a vida valia a pena — não a vida daqueles que estavam confinados ali contra a sua vontade, claro, mas a vida daqueles que os prendiam dentro daquelas masmorras sanguinárias. A justificativa era justamente que aqueles ali presos parasitavam e adoeciam o resto da sociedade tida como saudável pelos regimes totalitários. Até as democracias liberais do mundo, embora possuam vantagens com relação às liberdades individuais, acabam jogando milhões de pessoas em moedores de carne metafóricos através do desemprego, desigualdade, desespero financeiro e violência urbana.
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Como escrevi, a ideia de que nascer é sofrimento é antiga. Muito antiga. Ela se encontra na primeira nobre verdade do budismo, que afirma que nascer é sofrer, envelhecer é sofrer, adoecer é sofrer e morrer é sofrer, além de que a união com aquilo que desagrada e a separação daquilo que agrada também é sofrer. Na raiz de tudo encontra-se o nascimento. Da antiguidade até os nossos dias, todas as expressões religiosas que adotaram o ascetismo real, aquele que recusa o mundo, trataram o nascimento como um evento negativo ou, no mínimo, um azar para aquele que nasce. Foi sempre no momento em que o ascetismo foi relaxado ou recusado, mesmo dentro dessas tradições, que a violência afirmadora da vida tomou forma.
Na filosofia pura, divorciada da religião, a prática da não violência entre os que condenam o nascimento acaba sendo mais clara e óbvia, apesar de mais rara. O antinatalismo, a ideia de que o nascimento é ruim para o ser que nasce, queiram ou não admitir, é um posicionamento ético ligado ao pessimismo filosófico, ao posicionamento de pensadores que concluíram que não ser é melhor do que ser, porque ser implica em sofrimento. Como escreveu Ligotti, parafraseando: a inexistência nunca machucou ninguém, já a existência machuca a todos. Essa noção filosófica pessimista da realidade, uma noção que é contra o aumento do sofrimento no mundo, serve de base para a ética antinatalista. O resto é história, devaneio e mentira.
por Fernando Olszewski