Antinatalismo e Eugenia

Cólera, Le Petit Journal

Antinatalismo não é eugenia, eugenia não é antinatalismo. Antinatalismo é um termo específico, que surge num momento específico e tem uma história específica, história essa que não tem absolutamente nada a ver com eugenia. Eugenia também é um termo que possui uma história e um uso bastante específicos. De forma resumida, podemos dizer que antinatalismo é a posição filosófica que considera negativo que seres sensíveis (especialmente humanos) passem a existir devido ao sofrimento e terminalidade intrínsecos à existência sensível. Basicamente quer dizer que seria melhor não termos nascido. O termo antinatalismo, com essa conotação, surgiu de maneira independente na primeira década do século XXI através de autores como Theóphile de Giraud e David Benatar. Ambos reconhecem que tal posicionamento deve muito ao pessimismo filosófico de pensadores como Arthur Schopenhauer e Emil Cioran, entre outros.

Já eugenia é a tese de que devemos selecionar os melhores traços genéticos da população para produzirmos humanos mais saudáveis ou superiores ao longo do tempo. Historicamente, o eugenismo esteve bastante atrelado à pseudo-ciência do racismo científico europeu do final do século XIX e início do XX, racismo esse que culminou no nazismo alemão e que, mesmo antes, serviu de desculpa para barbáries cometidas por colonizadores europeus ao redor do mundo. Apesar da eugenia não necessariamente ser uma pseudo-ciência racista, ela acabou sendo bastante associada ao racismo pseudo-científico; e corretamente, na minha opinião. Dito isso, fica claro que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Mas virou moda entre críticos do antinatalismo como filosofia associá-lo à eugenia racista, principalmente no Brasil e, em especial, entre críticos com viés político progressista.

Não vou fazer um trabalho exaustivo aqui. Farei apenas um resumo, uma introdução rápida e direta ao ponto do porquê uma coisa não têm a ver com a outra e como, pelo contrário, a eugenia está associada a ideais “pró-natalistas”. O estopim para escrever este texto foi a absurda tese direcionada a mim, que li recentemente numa rede social, de que, apesar das duas coisas serem distintas, eu precisava tomar cuidado ao falar sobre antinatalismo, pois ele (supostamente) sempre acabaria caindo na eugenia. Logo, eu deveria me autocensurar ou ser parcimonioso na hora de abordar o tema. Isso tudo começou após eu defender uma mulher jovem que realizou procedimento de laqueadura, algo que é extremamente difícil para mulheres conseguirem realizar, ainda mais quando são jovens, graças à maldita cultura que as trata como parideiras em potencial.

A jovem não só realizou o procedimento como aparentemente citou a famosa frase que termina o romance Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Eu celebrei o fato numa rede social, trazendo citações antinatalistas de outros autores. Isso atraiu muitos comentários a favor da jovem e das minhas citações, mas também vários contra. Dois deles especificamente me acusaram de defender eugenia por causa do antinatalismo. Um dos comentários foi bem tosco, já o outro tentou trazer essa ideia nojenta de que eu deveria tomar cuidado, pois inevitavelmente antinatalismo acabaria em eugenia e racismo. Contudo, a associação das duas coisas é algo que só acontece na cabeça de quem é crítico ou quem não entende absolutamente nada do que é antinatalismo, sua história e como ele é aplicado.

Claro que há na internet imbecis irrelevantes que abusam do termo se autointitulando “antinatalistas”, mas a grande maioria inevitavelmente o abandonam assim que percebem que ele nada tem a ver com as aspirações da esgotosfera virtual. Incels que utilizam o termo demonstram um total desconhecimento daquilo que foi escrito por David Benatar, Julio Cabrera, Emil Cioran, Peter Wessel Zapffe, Philipp Mainländer, Arthur Schopenhauer, Abu al-Ala al-Maa'rri, entre tantos outros pensadores e precursores do antinatalismo. Eles demonstram óbvio desprezo pela Sabedoria de Sileno, pela tragédia grega e pelos escritos do cânone pali do budismo. E graças à total falta de interesse dos críticos do antinatalismo, somado ao fato de que esses críticos vivem online o tempo todo, sua impressão da filosofia acaba vindo desses incels que habitam os piores cantos das redes sociais.

O termo “antinatalismo” aparece primeiro de forma genérica no livro The Struggle for Population (em português: A Luta pela População), publicado pelo sociólogo britânico David Victor Glass em 1936. Na obra, o termo aparece duas vezes atrelado à então tendência de queda de natalidade em alguns países europeus, tendência essa que era combatida por políticas de aumento da natalidade. Em nenhum momento o termo antinatalismo é associado à eugenia nessa obra. Sobre eugenia, Glass fala rapidamente da Alemanha nazista, que desencorajava o aborto, exceto em casos de má-formação do feto. Ou seja, nada a ver com antinatalismo — pelo contrário, há aqui uma política escancaradamente pró-natalista. O fato de que os nazistas encorajavam o aborto de fetos mal-formados enquanto premiavam mães que pariam dúzias de filhos não fazia deles antinatalistas, mas pró-natalistas. Era pró-natalismo seletivo, sim, mas era pró-natalismo.

Nessa hora pode surgir algum desavisado e perguntar algo como: “mas e quanto aos judeus, ciganos, eslavos e outras etnias que os nazistas consideravam indesejáveis, eles não eram antinatalistas contra essas etnias?” A resposta é não. Os nazistas eram genocidas contra essas etnias. Matar e esterilizar os outros à força chama-se genocídio. Genocídio também é um termo muito bem definido, com uma história bem delineada, assim como eugenia e, também, antinatalismo têm definições bem delineadas. E falo aqui apenas no sentido genérico do termo antinatalismo; se utilizarmos o sentido filosófico, que é recente e popularizou o termo, ele consegue se distanciar ainda mais de qualquer ideia de eugenia ou genocídio.

Quando utilizamos o termo “antinatalismo” no sentido genérico e não filosófico, o mais próximo que temos disso não é eugenia ou racismo, mas o controle populacional que ocorreu e ainda ocorre na China. Durante três décadas, o governo chinês implementou — ao meu ver, corretamente — a política de um filho por casal, que mais recentemente foi relaxada para dois filhos. O irônico é que a vasta maioria dos críticos de internet que acusam a filosofia antinatalista de ser eugenista parece fingir não saber que a política de controle populacional mais bem sucedida da história foi realizada por um Estado socialista cuja constituição é assumidamente marxista. Porém, como parece haver entre os críticos da filosofia antinatalista uma confusão entre o que é controle populacional e o que é eugenia, fica difícil mesmo para eles admitirem que a China, que muitos deles enxergam como bastião do progresso humano, é o caso mais bem sucedido de controle populacional.

Tendo abordado tudo isso, retorno ao que abordei no começo sobre o surgimento do termo antinatalismo no sentido contemporâneo. Ele surge nos escritos do pensador francês, Theóphile de Giraud, e nos escritos do filósofo sul-africano, David Benatar. Como já escrevi, Giraud credita diversos filósofos pessimistas, incluindo Cioran e Schopenhauer, além de escritores como Giacomo Leopardi, como precursores deste tipo de pensamento. Em algumas entrevistas, Benatar também dá os devidos créditos à Schopenhauer. Ambos mencionam que o sentimento também existia em filosofias e religiões antigas, como o budismo. No sentido atual, não genérico, e através do qual o termo “antinatalismo” se popularizou, ele está atrelado a uma tradição de pensamento que considera passar a existir como um acontecimento negativo quando se é um ser sensível, isto é, um ser capaz de sentir dor e sofrer. É uma questão de filosofia moral, um posicionamento ético. Não tem a ver com etnia, raça ou classe social. Tem a ver com dor e sofrimento, com a ideia de que, por mais que se tente, o mero ser é sempre ligado ao atrito e à finitude.

É possível extrair daí ideais malucos? Sim. Nos EUA, principalmente, existem alguns que acham que o correto seria impedir violentamente os outros de se reproduzir. Eu particularmente atribuo isso ao complexo norte-americano e anglo-saxão em geral de querer ser herói e salvar o mundo, mesmo que enfiando os seus valores goela abaixo dos outros. Mas o fato é que nenhum filósofo sério que defenda o assunto na academia ou na literatura hoje ou no passado foi a favor de usar a violência para que os outros não se reproduzam. Primeiro, porque é errado ser violento contra os outros dentro de uma concepção filosófica que visa diminuir o sofrimento. Segundo, porque é impraticável ainda que não fosse errado. Terceiro, porque, além de impraticável, é uma maneira excelente de fazer com que você se torne um agente nocivo aos outros que pode e deve ser contido.

Entretanto, mesmo entre esses poucos mais exaltados, antinatalismo não é atrelado à eugenia, classismo, racismo, etc. Como afirmei anteriormente, mesmo a eugenia genocida do regime nazista não pode ser caracterizada como antinatalista, seja num sentido genérico da palavra, seja no sentido atual do termo filosófico. Aquele regime não era antinatalista, mas pró-natalista seletivo. Ele não queria atingir o fim da espécie de forma pacífica através da recusa voluntária da reprodução, mas a continuidade e multiplicação eterna daqueles que o regime considerava como sendo superiores. Mesmo entre os mais exaltados antinatalistas, aqueles que acham que deveríamos forçar os outros a não se reproduzir, a ideia é que todos não se reproduzam, sem exceção. E esses são uma minoria irrelevante dentro do debate acadêmico e literário. Acusar o posicionamento filosófico de pessoas como Benatar, Cabrera, Cioran, Zapffe, Mainländer, Schopenhauer, etc, de eugenia é ignorância na melhor das hipóteses e mau-caratismo na pior.

Numa análise um pouco mais pessoal: eu acredito que determinadas pessoas enxergam no pessimismo filosófico e no antinatalismo algo que causa repulsa, algo que é ruim em si, algo mau. Elas não conseguem admitir que tal filosofia possa nascer de um lugar bom, de uma compaixão extrema para com os seres sensíveis. Em suas cabeças, defensores desse tipo de filosofia só podem ser ignorantes ou maus. Daí ser tão fácil para eles associarem antinatalismo com eugenia, classismo, racismo e nazismo. Contudo, do modo pessimista e antinatalista de enxergar a realidade, todos os ideais que afirmam a existência se comprometem com a ordem estabelecida, não importa muito se as pessoas sigam ideais maus ou bons — nós pessimistas ao menos fazemos essa distinção entre os afirmadores, coisa que afirmadores muitas vezes não fazem conosco. Se querem ver, aliás, quem são os grandes exemplos de eugenistas racistas assumidos de hoje, todos, sem exceção, são radicalmente pró-natalistas: pessoas como Elon Musk e o casal hipster Simone e Malcolm Collins.

Encerro por aqui. Não há mais nada a acrescentar.


por Fernando Olszewski