Não devemos um futuro ao passado
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Adieu!, de Alfred Guillou |
Não quero neste ensaio falar mal ou demonizar o historiador João Pedro Rangel Diniz e seu trabalho no projeto Operação Barbarussa, que está presente em diversas redes sociais. Inclusive não estaria falando sobre ele aqui se não o seguisse e não considerasse ótimo o seu trabalho de divulgação de tópicos relacionados à história. Gosto do que ele faz. Acho a abordagem leve e às vezes cômica do projeto muito boa. Inclusive, antes de começar a falar sobre o vídeo que me inspirou a escrever este texto, recomendo o vídeo do Operação Barbarussa em que ele, de forma tranquila e descontraída, descasca completamente a palhaçada pseudo-histórica de que a civilização suméria tinha ligação com extraterrestres chamados Anunáqui (ou Anunnaki), que teriam vindo de Nibiru, um suposto planeta desconhecido do sistema solar. Anunáqui é um termo histórico real, mas eles eram apenas deuses do panteão sumério, não extraterrestres.
Nem mesmo o vídeo cujo conteúdo me inspirou a escrever este ensaio é ruim. Apenas discordo totalmente de um ponto específico dele. O vídeo do qual falo é recente. Nele, Diniz começa falando sobre a reconstrução realista feita por cientistas de seres humanos que viveram há milhares de anos ao redor do mundo a partir de suas ossadas. Ele fala sobre como todos esses humanos, nossos antepassados, sentiam medo, amavam, brincavam, sentiam nostalgia quando lembravam de suas infâncias, além de que certamente tinham e defendiam opiniões fortes sobre muitas coisas. O humano mais antigo que aparece no vídeo foi habitante de onde hoje é a China e viveu há mais de 140 mil anos atrás. É muito bonito, aliás, o vídeo. Num determinado ponto, ele fala sobre como essas coisas fazem com que percebamos que somos todos parte de uma enorme linhagem humana e que temos como objetivo não só sobreviver, mas tentar deixar um mundo menos pior para trás.
Por mais que eu discorde daqueles que afirmam que há na história humana um sentido discernível e que esse sentido claramente aponta para a construção de uma determinada sociedade baseada num tipo bem específico de relação de produção e propriedade, concordo que é bom quando tornamos as nossas vidas menos piores do que eram antes, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo. Concordo, por uma via completamente diferente daquela defendida por aqueles que acreditam que o homem se realiza através da história, com a ideia de que o nosso mundo tem muito a ser “despiorado”, se me permitem usar um neologismo barato. Pela via do pessimismo cósmico, que trata a nossa existência como sendo um infortúnio, concordo com a ideia Schopenhaueriana de que devemos nos ver todos como companheiros de sofrimento. No capítulo Observações Adicionais sobre a Doutrina do Sofrimento do Mundo, no segundo volume de Parerga e Paralipomena, Schopenhauer escreve:
Na verdade, a convicção de que o mundo, e portanto também o homem, é algo que realmente não deveria existir, é calculada para nos encher de indulgência uns para com os outros; pois o que podemos esperar de seres em tal situação? De fato, desse ponto de vista, pode nos ocorrer que o tratamento realmente adequado entre uma pessoa e outra, em vez de Sir, Monsieur e assim por diante, seja Leidensgefährte, socii malorum, compagnon de misères, my fellow sufferer. Por mais estranho que isso possa parecer, está de acordo com os fatos, coloca a outra pessoa sob a luz mais correta e nos lembra daquilo que é mais necessário: tolerância, paciência, indulgência e amor ao próximo, de que todos precisam e, portanto, cada um de nós deve ao outro.
Apesar de discordar completamente da noção de que a história humana é o palco de embates que inevitavelmente engendram sociedades mais perfeitas, concordo que devemos buscar não normalizar a ideia de que o correto é pisar nos outros e deixá-los morrer passando necessidades, especialmente quando somos capazes de produzir tanta abundância. Vivemos num mundo em que há mais moradias vazias do que pessoas sem-teto e produção de comida suficiente para que ninguém passe fome. Então, por outras vias, concordo com a mensagem geral de Diniz de que é bom tentarmos “despiorar” o mundo, não porque devemos isso ao passado, mas porque reconheço no sofrimento dos outros o meu próprio sofrimento. Estou muito longe de ser um santo, é óbvio, mas reconheço a dor do outro como espelho da minha.
O que não concordo em nenhum momento é com a noção implícita — e às vezes não tão implícita assim — no vídeo de que devemos ao passado não só construir um mundo melhor, mas deixarmos descendentes. De novo, a mensagem de Diniz, de que devemos tentar fazer com que o mundo não seja tão ruim, é ótima e eu assino embaixo. Mas discordo da noção de que devemos isso aos nossos antepassados por discordar da ideia de que a história do homem é composta de batalhas que produzem sociedades mais perfeitas ao longo do tempo e que nós todos temos a obrigação de participar pelo fato de termos sido paridos. E discordo totalmente da ideia implícita de que, para honrarmos o passado, devemos deixar descendentes que terão vidas melhores no futuro.
É claro que, se for para deixarmos descendentes, que busquemos tornar o mundo um pouco melhor. Afinal, se já penso que é moralmente problemático nos reproduzirmos, penso que é ainda mais problemático nos reproduzirmos acreditando que o mundo deva ser ainda mais disfuncional do que ele é hoje. Mas, dito isso, não penso que devamos nos reproduzir, muito menos para honrar o passado, independentemente se acreditamos que estamos honrando a luta por um mundo melhor e mais harmônico dos nossos antepassados, ou se estamos honrando a raça, ou etnia, ou nacionalidade, ou qualquer outra porcaria tribal deles.
Eu sinto muito que meus avós passaram o pão que o diabo amassou com pobreza. Sinto muito que alguns deles fugiram de opressão política, ditadura e guerra civil, inclusive. Eles podem até não concordar comigo mas, ao meu ver, penso que eu os honro muito mais não cometendo o erro que eles cometeram ao terem filhos. Será que não foram capazes de enxergar que, assim como eles, seus descendentes também estariam expostos à toda sorte de desgraça em suas vidas? Acho que não. A vontade de vida é implacável e cega as pessoas. E mesmo se pensaram nisso, mesmo se até concordaram que estariam condenando as gerações futuras ao sofrimento e morte, não conseguiram deixar de afirmar a vontade de vida que habitava dentro deles. E agora estou aqui. Eu e mais vários descendentes, entre irmãos e primos de tudo quanto é grau. A maioria deles, inclusive, se reproduzindo.
Não concordo que honro as agruras pelas quais meus antepassados passaram engendrando novas consciências humanas que estarão expostas aos atritos da vida. Pouco importa se esses atritos são excepcionais ou se eles são os atritos considerados normais por todo mundo que têm filhos, atritos que eles parecem não se importar de expor seus descendentes. Ainda que tivesse filhos, teria que os ter tendo plena consciência de que eu estaria condenando eles a uma existência que é repleta de dores, surpresas ruins e cuja única certeza é a morte de todos. Por mais que eles pudessem ser ignorantes e acreditassem amar de paixão a pena a qual foram submetidos por mim, continuaria sendo um fato que eu estaria condenando-os à vida. Como escreve Schopenhauer, na mesma obra citada anteriormente:
[…] para o homem que sabe, as crianças podem, às vezes, parecer delinquentes inocentes que estão condenados não à morte, é verdade, mas à vida, e ainda não compreenderam o significado da sentença.
Por essa razão, assim como Brás Cubas no romance de Machado de Assis, creio que o melhor é poder dizer o seguinte ao final de uma vida:
Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
Com aquilo que sei, com aquilo que sinto, eu não poderia ter dado vida à alguém sem cair em total contradição comigo mesmo, sem ser intelectualmente desonesto e sem cometer um crime moral.
A ideia da recusa da reprodução como forma de rompimento do ciclo de nascimento e morte, um ciclo recheado de sofrimentos, não é nova, algo que abordo em vários dos meus textos. Ela está presente na filosofia antiga, na tragédia grega e em algumas religiões milenares, mais especificamente no bramanismo, no budismo, jainismo e, também, no cristianismo. Sobre esse ponto acho importante lembrar que concordo com Schopenhauer quando ele afirma que a mais importante forma de classificar as diferentes religiões é quanto ao fato de suas doutrinas serem otimistas, isto é, afirmadoras do mundo, da vida e da existência sensível, ou pessimistas, isto é, rejeitadoras do mundo, vida e existência sensível. Em O mundo como vontade e como representação, ele escreve:
Eu não posso, como geralmente é feito, estabelecer a diferença fundamental entre todas as religiões pelo fato de serem ou monoteístas, politeístas, panteístas ou ateístas; mas apenas pelo fato de serem otimistas ou pessimistas, isto é, se expõem a existência deste mundo como justificada por si mesma, portanto, a louvam e celebram, ou a consideram como algo que só pode ser concebido como a sequência da nossa culpa e, por conseguinte, em verdade não deveria ser, na medida em que reconhecem que dor e morte não podem jazer na ordem eterna, originária e imutável das coisas, não podem jazer naquilo que deve ser em todos os sentidos.
Nada disso significa que há para Schopenhauer, ou para mim, qualquer necessidade de verdade nas asserções metafísicas e doutrinárias feitas por nenhuma dessas religiões. Elas expressam verdades filosóficas através da doutrina da fé, ou seja, são ornamentadas com mitos e histórias que, francamente, não são reais num sentido histórico e cientifico. Como Hari Singh Gour escreve em O espírito do budismo:
O Buda declarou suas proposições no estilo pedante de sua era. Ele as joga na forma de Sorites; mas, como tais, elas são logicamente imperfeitas, e tudo o que ele deseja comunicar é o seguinte: “Alheios ao sofrimento ao qual a vida é submetida, o homem gera crianças e, portanto, a causa da velhice e da morte. Se ele apenas entendesse o sofrimento que adicionaria por seu ato, ele desistiria da procriação de crianças; e então encerraria a operação da velhice e da morte.”
Claro que isso pode gerar um desconforto, especialmente quando observamos que determinadas lutas por libertação são intergeracionais, como é o caso do conflito na Palestina, por exemplo. A ideia corrente em situações como essas parece ser a seguinte: “se eu não alcançar a libertação, meus filhos, netos ou bisnetos alcançarão”. Isso implica em recrutar pessoas que ainda não existem e que não pediram para nascer para tomarem parte numa guerra sangrenta e se tornarem vítimas de genocídio. Mas, como afirmou um amigo meu durante uma conversa há alguns anos atrás: apesar de parecer que os oprimidos estariam dando a vitória aos opressores caso eles deixassem de se reproduzir, a realidade é a oposta: a vitória estaria com eles, pois eles estariam abrindo mão de uma existência maléfica, enquanto os seus opressores, burros e movido a mitologias otimistas e afirmadoras da vontade de vida, continuariam se multiplicando e sofrendo ao longo das gerações.
Não devemos um futuro ao passado. Parece brincadeira, meme de internet, mas é a verdade. Não devemos dar aos nossos ancestrais, a maioria esmagadora dos quais nem existem mais, a ilusão de continuidade através da perpetuação de nossos genes. Há um gigantesco preço que o universo, tal como ele é, cobra da sensibilidade. Há um preço ainda mais alto a ser pago quando a sensibilidade é extrapolada ao ponto de adquirir consciência profunda. Consciências — essas coisas cheias de sonhos, aspirações, dúvidas, desejos e o escambau — elevam o horror da sensibilidade à enésima potência. Enquanto o animal sofre pelo presente, o único tempo no qual ele habita, humano sofre pelo presente, pelo passado e pelo futuro. Então, não, não devemos perpetuar nossa condição porque fazemos parte de uma enorme corrente de humanos que viveram, amaram e sofreram no passado. Não há nada na história humana e muito menos na história natural que seja redimível. Ela é um banho de sangue repleta de angústias pontuada por momentos ilusórios de beleza e alegria.
por Fernando Olszewski