Pessimismo, Quietismo e Impotência

O monge à beira-mar, de Caspar David Friedrich

Há no meio acadêmico — meio do qual não faço parte, embora pretendesse — uma corrente filosófica pessimista anti-quietista. O cerne de sua tese é a reinterpretação da filosofia de Schopenhauer pela lente da escola de Frankfurt. Confesso que não me debrucei dias analisando o que essa corrente diz, até porque não teria absolutamente nada a ganhar com esse trabalho visto que não estou na academia, mas o que me parece é que essa corrente é mais otimista até mesmo do que o próprio Adorno e o próprio Horkheimer. Num sentido intelectual, não acho que haja problema em ser otimista, embora discorde do otimismo e o critique. Mas querer torturar o pensamento de Schopenhauer e transformá-lo em algo que afirma a vida e a existência vai além do otimismo.

Ligada ao pessimismo anti-quietista está a noção de que um pessimismo que desiste do mundo é, essencialmente, “quietista”. O que se quer dizer com esse termo “quietista” é que o pessimismo schopenhaueriano tradicional e, por tabela, o pessimismo de Cioran, Zapffe, Cabrera e Benatar, ignora as questões sociais e políticas e que isso seria uma espécie de afirmação implícita das injustiças do mundo capitalista. Trato da ideia de que o pessimismo verdadeiramente pessimista de Schopenhauer seria um tipo de afirmação do capitalismo no meu texto “Pessimismo e Política”, que também se encontra no canal do Exilado Metafísico e no Spotify. Nele, comento sobre a pífia crítica marxista de Lukács a Schopenhauer, que nada mais é do que um ad hominem elevado à análise filosófica séria, algo que só foi — e ainda é — possível graças à popularidade de sua ideologia política. Lukács, aliás, também criticou a escola de Frankfurt, em parte, por considerá-la quietista, embora não usasse exatamente esse termo. 

Naquele meu texto, noto que durante a sua crítica a Schopenhauer, Lukács convenientemente deixa o pessimista Mainländer de fora. Mainländer, que era socialista e enxergava na superação das injustiças sociais um passo importante na rejeição da existência a ponto de criticar Schopenhauer por ignorar o problema político, ficaria horrorizado com a ideia de um pessimismo que tem vergonha de dizer que a existência é malignamente inútil, como resume o escritor Thomas Ligotti. Não penso que os proponentes do pessimismo anti-quietista estejam mentindo para os outros, não acho que eles sejam desonestos, mas penso que eles enganam a si próprios. O que Nietzsche chama de “pessimismo dionisíaco” é muito mais honesto consigo mesmo, embora também discorde dele. Inclusive, fosse eu afirmar a existência como um bem, sem dúvida alguma veria muito mais valor no pessimismo dionisíaco nietzscheano do que num pessimismo verdadeiramente impotente, desprovido de sua potência rejeitadora da vida.

Há um grito de desespero e raiva e, também, um clamor por justiça cósmica quando se percebe e se afirma, sem o menor pudor e sem cerimônia, que a existência é malignamente inútil. Ela não é apenas inútil, mas inútil de uma forma maligna, o que quer dizer que ela não tem nenhum propósito cósmico e machuca a todos de maneira profunda. Isso não significa que quem afirma isso ama as injustiças do mundo, nem que essa pessoa é indiferente às suas dores, muito pelo contrário. Eu certamente não amo as injustiças sociais nem sou indiferente às dores do mundo. Penso que as injustiças produzidas pelo homem são grotescas, inclusive, e exacerbam a desgraça que é ter vindo ao mundo como um ser sensível. As dores do mundo, porém, não existem apenas por causa das injustiças causadas por um sistema sócio-político-econômico feito pelo homem.

A dor física nem sequer depende do homem para existir. A raça humana nada mais é do que uma flatulência na ordem da história natural da biosfera. Os dinossauros surgiram entre 243 e 233 milhões de anos atrás e foram extintos há 66 milhões de anos atrás. Isso significa que as inúmeras espécies de dinossauros viveram entre  167 e 177 milhões de anos na Terra, mais ou menos. Sendo animais complexos, eles possuíam a capacidade de sentir dor física e, muito provavelmente, formas rudimentares de medo e desespero. Em comparação, a nossa espécie, o Homo sapiens, surgiu há cerca de 200 ou 300 mil anos atrás. E o capitalismo não tem nem 500 anos. Dor, sofrimento, desespero são marcas da existência sensível sem a necessidade de haver um animal profundamente consciente, capaz de explorar o ambiente e a si próprio, como é o caso do ser humano.

Embora possamos criticar Schopenhauer por sua apatia política, tratar a sua rejeição da existência — que elevava os ascetas que abdicavam do mundo à mais alta categoria de ser humano — como quietismo é cometer um erro grave. Não se deve misturar as coisas. Uma não é consequência necessária da outra, quietismo não é uma consequência necessária do pessimismo cósmico. Para Mainländer, por exemplo, se todas as pessoas fossem capazes de reconhecer que o não ser é melhor do que o ser sem a necessidade de uma transformação social que saciasse as necessidades materiais básicas de todos, tal transformação social não seria necessária. Uma filosofia pessimista digna de seu nome não escamoteia e nem esconde envergonhadamente esta conclusão existencial básica: não ser é melhor do que ser. Ela não nega que a vida, em especial a senciência, não encontra no universo um berçário confortável, pelo contrário. Como Zapffe escreve na seção 4 do capítulo 2 da sua tese, intitulada Sobre o Trágico:

As condições de vida existentes não são consideradas como um contato de interesse. O cortejo dos indivíduos em seus esforços de adaptação tem sido perturbadoramente unilateral e, invariavelmente, é recebido com frieza. Não se pode falar em contato de interesse porque o ambiente não tem a capacidade ou a vontade de sofrer variações em harmonia com as necessidades do ser vivo em uma determinada situação de emergência. Nesse sentido, o universo é estranho a tudo que vive. Fogo e seca, tempestade e frio atingem sem piedade; cabe à vida se salvar da melhor maneira possível. Os termos dessa relação podem ser vistos na imagem de uma permissão de residência que pode ser revogada a qualquer momento em um país bárbaro e aterrorizante, onde a língua é estranha, que opera sob ordens de entidades desconhecidas e inacessíveis e onde se pode ser torturado e morto a qualquer momento. Muitas vezes, a recompensa e a desgraça podem estar ligadas ao nosso próprio comportamento; outras vezes, as coisas dão errado quando esperamos um pouco de sucesso.

A ideia de que devemos nos perpetuar através de gerações para combater a suposta “boa luta” e alcançar uma sociedade perfeita antes de podermos afirmar abertamente que não ser é melhor do que ser é o verdadeiro quietismo, na acepção original da palavra: é querer ficar quieto, sem revelar a verdade ainda mais brutal do que a verdade de que, sim, humanos exploram humanos. Por mais que a humanidade explore a si mesma e isso seja ruim, há uma verdade mais brutal ainda: todos os seres sensíveis, incluindo os humanos que além de sensíveis são conscientes, são extremamente desafortunados por terem passado a existir, visto que não há propósito algum e o atrito é parte fundamental e inescapável do ser. Aliás, quando entendemos que ser é ser atritado, fica mais fácil entendermos como é possível que uma espécie de animal consiga ser tão grotesca consigo mesma.

E nem sequer somos a única espécie de animal que machuca a si mesma. Basta pensarmos em determinadas espécies de insetos e aracnídeos que praticam o canibalismo após o coito. Antes que se argumente que tais comportamentos evoluíram de forma a beneficiar essas espécies, enquanto que a exploração do homem pelo homem não tem benefício algum e é feita por pessoas malvadas, trago Marx à discussão: o capitalismo, segundo ele, tem sim uma função histórica essencial, trazendo avanços materiais e técnicos ao homem, embora não seja a última etapa da história. Então, meus amigos, não. Nem mesmo Hegel ou Marx tratam a história humana como uma batalha entre bonzinhos e malvadinhos, malvadinhos esses que teriam surgido do nada e atacaram a paz e serenidade dos bonzinhos. Aliás, um desavisado lendo alguns textos de Hegel pode até achar que está lendo autor pessimista, tamanha é a ênfase de que a história do homem é um banho de sangue para ele — e com razão. O mesmo ocorre em Marx.

A diferença deles para os pessimistas é que esses dois autores veem algum tipo de propósito maior na realidade ou no homem, um propósito que justificaria todo esse banho de sangue. Alguns daqueles que enxergam um propósito em colocar novas gerações no mundo para participarem da dor e da morte com a justificativa de que Deus ou a humanidade precisa de novos soldados para lubrificar as engrenagens do devir com seu sangue acusam os pessimistas de quietismo. Porém, a acusação pode ser facilmente invertida neste caso, da mesma forma que podemos facilmente inverter a acusação de egoísmo da parte dos que escolhem não ter filhos e dizer que, na verdade, egoísmo é justamente escolher criar novas consciências.

Quietismo, creio eu, é querer justificar a perpetuação da espécie numa existência atritada e sem propósito como algo que vai além dos egoísmos individuais e coletivos da espécie. Seria um quietismo que não fica quieto, mas desenvolve aqui e ali argumentos para diminuir o cerne da questão trazida pelo pessimismo: a sombria perspectiva de que a natureza cometeu um erro de percurso ao produzir um ser capaz de olhar para todo esse processo e perceber a sua futilidade. Essa é a dura e inescapável realidade. As gerações futuras podem censurar e mandar para a fogueira todos os pessimistas, destruir todos os seus livros e escritos, e ainda assim surgirão pessoas que chegarão a essa mesma conclusão sombria, assim como também haverá pessoas que chegarão a mesma conclusão de que o homem explora o homem e que isso poderia e deveria mudar. Ambas as coisas são verdade, mas uma é mais fundamental do que a outra e, pelo visto, mais difícil de ser aceita.


Fernando Olszewski