A autocrítica (provavelmente) não virá

Ao longo de outubro escrevi quatro textos com temas relacionados à filosofia política — e à metafísica, no caso de Homens e baratas (clique aqui para ler), publicado no dia 27, véspera do segundo turno. Todos os textos lidavam, uns mais e outros menos, com as eleições presidenciais deste ano. O primeiro deles, Outubro de 2018, foi publicado dia 6, véspera do primeiro turno; contudo, comecei a escrevê-lo uma semana antes. Houveram poucas modificações ao longo da semana. As alterações ocorreram principalmente com relação às datas as quais me referi.

Mãe morta e sua criança, pintura de Edvard Munch

Uma das coisas que não foram modificadas ao longo da semana, entretanto, foi a ideia de que, para mim, já estava clara uma possível vitória de Jair Bolsonaro no primeiro turno. Ao comentar esse meu temor —  temor baseado em fatos  duas semanas e meia antes das eleições, fui motivo de risada em uma roda de colegas. Apenas um deles concordou comigo e ele também foi ridicularizado pelos outros. No dia 7 de outubro, Bolsonaro obteve quase 47% dos votos. Mais de 49 milhões de eleitores o apoiaram nas urnas. Ele não conseguiu, mas chegou perto de vencer as eleições no primeiro turno.

No começo do segundo turno, como outros textos meus deixam transparecer, não tinha dúvida de que este candidato seria eleito presidente do Brasil no dia 28. Foi o que aconteceu, para espanto (que espanto?) por parte de muitos de meus colegas, grande parte deles auto-proclamados esquerdistas, progressistas e adjetivos afins. Minha intenção era de que Homens e baratas fosse o último texto meu a tratar de filosofia política este ano, mas agora essa minha vontade inicial foi por água abaixo. Agora que as eleições acabaram, algo precisa ser dito. Tentarei ser breve, mas duvido que seja possível.

Hoje um dos meus melhores amigos me enviou um vídeo de Youtube com o título de 7 erros da esquerda que elegeram Bolsonaro de uma pessoa que desconhecia, chamada Túlio Vianna (clique aqui para assistir ao vídeo). Vianna é professor de direito penal da faculdade de direito da Universidade Federal de Minas Gerais, a UFMG. O vídeo foi postado dia 28 de outubro. A princípio imaginei que seu conteúdo não fosse me agradar, mas acabei achando interessante. Vianna lista uma série de erros de maneira aparentemente desconexa, mas a origem de todos eles pode ser traçada — coincidentemente ou não — ao primeiro erro listado por ele: a insistência na crença da luta de classes pela esquerda brasileira, principalmente pelos petistas e seus aliados.

Tendo me posicionado  e votado — contra Bolsonaro nessas eleições, algo que também deixei claro em meus escritos de outubro, posso reafirmar a hipótese que deixei transparecer naqueles textos: pensar o mundo através do idealismo hegeliano e, também, através do materialismo histórico marxista, justificou e justifica quase todos os outros erros cometidos pela esquerda brasileira mencionados no vídeo do professor Vianna. Tratei de alguns destes erros em meus textos de outubro. Alguns deles, como as hipérboles e exageros constantes, foram marcas registradas do petismo ao longo dos anos noventa e continuaram sendo até os nossos dias.

Completei dezoito anos em 2001 e lembro-me muito bem do clima político da época — foi exatamente o que me fez votar entusiasmadamente em Lula nas eleições de 2002. "Neoliberal" era o adjetivo mais tranquilo pelo qual FHC era conhecido. Ele foi chamado de fascista inúmeras vezes. Na disputa com Lula em 2002 e com Dilma em 2010, José Serra também foi chamado de fascista inúmeras vezes. Chamar todas as pessoas de direita (ou até pessoas de outras vertentes de esquerda) de fascistas tornou-se algo tão endêmico dentro da esquerda brasileira que comentei a respeito no texto Outubro de 2018: chamaram tantos políticos de "fascistas" ao longo dos anos que, quando um fascista (ou proto-fascista) de verdade apareceu, o povo não ligou mais — pelo contrário, o povo brasileiro elegeu-o com larga vantagem.

Tenho dúvidas, inclusive, da capacidade que Lula teria tido para vencer Bolsonaro, caso não estivesse cumprindo pena por corrupção. Digo isso porque da mesma forma que pesquisas realizadas antes das eleições indicavam que o ex-presidente preso liderava nas intenções de voto, outras pesquisas realizadas antes e durante as eleições também mostravam que a maioria do povo queria ver Lula na cadeia.1, 2, 3

As hipérboles, os exageros e a ideia de que é impossível a existência de uma coesão social pré-revolucionária (pois, segundo essa crença, um sistema de classes jamais poderá ser genuinamente democrático e livre) são produtos da lógica dialética aplicada à história humana. Até mesmo a defesa de regimes autoritários que supostamente defendem o proletariado — fato mencionado por Vianna no vídeo — deriva do primeiro erro: enxergar o mundo através do embate dialético entre duas forças opostas que lutam pelo controle do mundo material — uma luta cujo resultado já estaria definido. Ou atingimos a liberdade e a democracia (na interpretação dada pelos defensores dessa crença) ou é melhor que não haja nada.

Poucas são as pessoas que não se sensibilizam hoje em dia no Brasil com a miséria material dos venezuelanos, ambas reflexo direto de seu governo truculento e autoritário. Escutei algumas vezes, ao longo do processo eleitoral, que falar do regime venezuelano era uma estratégia de medo propagada pela direita. Seria equivalente a velha frase "comunista come criancinha", tão repetida ao longo da Guerra Fria. Supostamente, os eleitores não deveriam ter receio algum, pois o Partido dos Trabalhadores e Lula jamais tentariam implementar aqui as mesmas políticas que foram implementadas na Venezuela por Chavez e, depois, por Maduro. Em seu vídeo, Vianna fala sobre a esquerda brasileira ter defendido o regime venezuelano, além de outros regimes autoritários de esquerda ao redor do mundo, e como isto acabou minando as críticas que a esquerda brasileira fez (e faz) a figuras autoritárias de direita.

Sim, é verdade que a direita boçal utilizou a Venezuela como um bicho-papão durante as eleições. Mas dizer que o Partido dos Trabalhadores não queria emular nenhuma política daquele regime no Brasil é uma informação fácil de refutar. Há diversos exemplos de entrevistas e comícios, gravados em vídeo, nos quais Lula e outros líderes do Partido dos Trabalhadores defendem o regime chavista e admiram suas políticas.

Antes de ser preso, Lula falou em comício que iria regular a imprensa e que tal atitude não seria radicalismo de sua parte  ele teria apenas ficado mais "maduro", palavra que ele repete algumas vezes. Ao repeti-las, membros do alto escalão do partido, incluindo Gleisi Hoffmann, começam a rir e se entreolhar, claramente entendendo o recado que Lula estava dando, algo óbvio para qualquer pessoa que assista o vídeo.4 Não foi a única vez que ele e outros petistas falaram a respeito disso.5 Vianna, em os 7 erros da esquerda que elegeram Bolsonaro, afirma que os ataques feitos por Jair Bolsonaro contra os meios de comunicação tradicionais já eram feitos há tempos pelos petistas — o que, infelizmente, é um fato.

Claro, também existem aqueles que não enxergam problema algum no atual regime venezuelano, que apoiam o controle da imprensa lá e aqui — afinal, qualquer imprensa que não fale bem de nós seria golpista —, que acreditam que os problemas naquele país não são fruto da administração de Maduro e seu partido, mas de intervenção americana, além de outras absurdidades do tipo. Até crenças como essas são, de novo, intimamente ligadas à crença maior de que a história da humanidade comporta-se de maneira dialética: uma força dominante do mundo material engendra sua própria contradição e, através de um embate entre estas duas forças contraditórias, uma nova situação é gerada. Portanto, seria através do embate entre os capitalistas e os proletários que um novo regime político surgiria, o socialismo.

Essa lógica, que é equivalente ao primeiro erro mencionado por Vianna em seu vídeo, também explica a oposição raivosa que vi sendo propagada por boa parte da esquerda contra Ciro Gomes, candidato que apoiei no primeiro turno. É a lógica que vem sendo utilizada há anos para legitimar o Partido dos Trabalhadores e seu grande líder como os verdadeiros bastiões da liberdade popular. Foram adeptos do materialismo histórico que, por alguma razão que escapa a compreensão, elegeram o Partido dos Trabalhadores e seu (suposto) infalível grande líder como as únicas alternativas reais de libertação dos explorados no Brasil. Qualquer outra alternativa de esquerda não seria real, seria mentirosa, um engodo neoliberal, fascista, entre outras coisas.

Contudo, o Partido dos Trabalhadores falhou tão miseravelmente que Jaques Wagner, ex-governador da Bahia e articulista petista, afirmou no meio da campanha do segundo turno que Ciro Gomes teria sido a melhor opção para a esquerda vencer as eleições.6 É claro que Ciro teria sido a melhor opção. É óbvio. De todos os candidatos, as pesquisas apontavam que Ciro era quem possuía a maior vantagem sobre Bolsonaro em um eventual segundo turno. Porém, não foi isso que o grande estrategista, Lula, quis. Pelo contrário: ele dinamitou a campanha de Ciro da cadeia em Curitiba, impedindo que determinados partidos se aliassem ao candidato pedetista.7, 8

Outro ponto que o vídeo de Vianna toca e eu já havia falado a respeito no texto Homens e baratas são as teorias conspiratórias. A esquerda ridiculariza, com razão, os conservadores que acreditam no suposto plano para a formação da União das Repúblicas Socialistas da América Latina, a URSAL. Isto é claramente uma teoria da conspiração ridícula, sem fundamento algum, propagada nos meios conservadores e liberais brasileiros, mas que milhares de eleitores de Bolsonaro deram crédito. Entretanto, ao mesmo tempo que tal teoria conspiratória é ridicularizada pelos progressistas, eles próprios dão crédito, há décadas, à diversas outras conspirações ridículas.

Todos escutamos teorias conspiratórias sobre Sérgio Moro ser um agente da CIA e sobre a Amazônia estar na iminência de ser invadida permanentemente pelo exército americano. Estas são apenas duas. Muitas outras têm circulado há anos. Em Homens e baratas afirmo que mesmo se tais teorias fossem verdade, a maioria dos eleitores não irá mais acreditar. Creio que as eleições de 2018 puseram isso à prova.

Até mesmo as fake news conspiratórias já circulavam antes nos meios da esquerda brasileira. Em 2014, pessoas próximas à mim e à minha família receberam mensagens de SMS nos seus celulares dizendo que, caso a presidente Dilma não fosse reeleita, elas perderiam o assistencialismo que recebiam do governo petista. O mais bizarro é que a maioria delas nem sequer recebia algum auxílio do governo, mas aquelas que recebiam votaram pela reeleição da presidente por medo de perderem o benefício.9, 10 O atual fenômeno de disparos de notícias sensacionalistas e amedrontadoras via WhatsApp, realizado hoje pela direita bolsonarista, já havia sido feito via SMS pela esquerda petista.

Sim, concordo que o grande capital seja predatório. É fato que os Estados Unidos promoveram golpes e regimes autoritários ao redor do mundo, no século passado, que serviram aos seus interesses econômicos. Concordo que o capitalismo seja nefasto e promova, em boa parte, a destruição de qualquer tipo de proteção social dos trabalhadores e do meio ambiente. Mas tirar direitos trabalhistas e destruir o meio ambiente são coisas que a falecida União Soviética, suposta defensora internacional dos trabalhadores e das causas progressistas, também fazia. Todos os impérios fazem essas coisas, pouco importa se são impérios baseados no Estado-nação, ou impérios baseados no capital internacional sem pátria.

As teorias da conspiração, assim como as hipérboles e a ideia que apenas uma sociedade pós-revolucionária — liderada pelo proletariado — pode trazer qualquer tipo de liberdade e democracia verdadeiras, são, ao meu ver, fruto de uma profunda crença no materialismo histórico, da qual a luta de classes é um componente fundamental. Nos textos que escrevi mês passado eu discorri brevemente sobre as razões pelas quais tendo a discordar de qualquer tipo de lógica dialética racionalista, seja ela o idealismo de Hegel ou o materialismo histórico de Marx. Não preciso entrar novamente nesse assunto, seria perda de tempo. Basta dizer que desconfio de qualquer crença demasiadamente arraigada e inquestionável que trate o progresso humano como produto de uma mecânica histórica supostamente racional.

Referências:
1. https://veja.abril.com.br/politica/maioria-dos-brasileiros-quer-lula-preso-diz-pesquisa/
2. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/maioria-quer-lula-condenado-e-preso-aponta-datafolha.shtml
3. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43761982
4. https://www.youtube.com/watch?v=qNF90kOc5Vw
5. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/08/11/lula-e-dilma-discursam-na-ufrj.htm
6. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/ciro-era-a-melhor-estrategia-para-ganhar-a-eleicao-diz-jaques-wagner.shtml
7. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/08/da-cadeia-lula-articulou-acoes-que-resultaram-no-isolamento-de-ciro.shtml
8. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/fomos-miseravelmente-traidos-por-lula-nao-farei-mais-campanha-para-o-pt-diz-ciro.shtml
9. http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/04/tse-pede-dados-de-celular-que-espalhou-boatos-na-eleicao-de-2014.html
10. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/1528644-raiva-do-pt-e-medo-de-perder-o-bolsa-familia-marcam-votacoes-extremas.shtml
11. http://www.well-storied.com/blog/kill-your-darlings