Um texto curto e fácil de entender

Tenho escrito textos longos demais. Há também o problema de escrevê-los para mim. O meu público-alvo sou eu. É uma espécie de terapia: coloco para fora o que penso e sinto sobre as coisas, às vezes sem explicar direito o que quero dizer com este ou aquele termo. Esta será uma tentativa de fazer algo pequeno e simples. O tema será o que penso sobre a vida.

Pintura de Raymond Douillet

O que penso sobre a vida não é complicado. Concluí, depois de muito tempo, que ela é trágica. Não apenas a vida humana, mas toda a vida animal é trágica. Dentre os organismos multicelulares, a única exceção que faria, talvez, seriam as plantas, porque elas não possuem sistema nervoso e não sentem dor. Além disso, a maioria das espécies de plantas são autotróficas, isto é, não necessitam consumir vida para obter energia, nutrientes e sobreviver. Já no caso de reinos como o reino animal e o reino dos fungos, o consumo de outras formas de vida é necessário para a sobrevivência.

A vida dos seres dotados de um sistema nervoso é trágica porque sua única função aparente é a perpetuação da espécie, quer dizer, a perpetuação da própria vida, não interessando a quantidade de dores e situações ruins que esses seres passem, geração após geração. Caso não existissem animais carnívoros, ainda assim a vida dos outros animais seria trágica, porque mesmo se comessem apenas plantas, eles ainda estariam expostos a dores, doenças, acidentes, violência, velhice, degradação e morte — tudo isso com um único objetivo, perpetuar a vida.

No caso do ser humano, o problema fica mais complicado. A evolução nos deu não apenas a nossa inteligência, mas também uma consciência profunda, capaz de auto-reflexão. Ao contrário de outros animais também inteligentes, somos capazes de forjar o nosso próprio mundo, transformando a natureza de maneira extraordinária. Mas somos capazes, também, de perceber a falta de sentido nesta carnificina toda que existe entre o nascimento e a morte. Por essa razão, somos exímios criadores de mitos. As mitologias que criamos, longe de serem fantasias inofensivas, tiveram e têm um efeito claro no mundo real: elas proporcionaram diferentes formas de organização responsáveis por manter os grupos vivos e coesos ao longo da história da espécie.

Cultos, religiões e ideologias: dos mitos mais primitivos até os mais complexos. A religião teve impacto real no mundo. Ajudou a dar coesão à sociedade, mas não só isso: ela permitiu a existência de estruturas físicas complexas. As magníficas catedrais medievais na Europa e os belos templos hindus na Índia são testemunhos dessa realidade. O mesmo acontece com o ideal político, seja ele qual for. Para desespero de muitos que adoram discutir política, a função primordial de uma determinada ideologia é exatamente a mesma da ideologia rival: dar coesão a um grupo de homo sapiens para que ele continue vivo e perpetuando a espécie.

Alguns mitos fugiram desse padrão. Certas religiões enxergaram o mundo como uma prisão, um inferno do qual nossas essências — sejam lá quais forem — precisam escapar. Por mais que todas as grandes religiões atuais considerem o mundo um lugar de passagem, nem todas o tratam como o inferno. No início do cristianismo, os gnósticos, em boa parte, viam o mundo como a criação de um deus mau. Até hoje, grande parte dos budistas consideram o nosso mundo como um eterno ciclo de nascimento, dor e morte, do qual única escapatória é o Nirvana, o estado em que nunca mais voltamos para cá.

Os gnósticos, porém, foram perseguidos e destruídos pela ortodoxia cristã ao longos dos séculos. Já os budistas acabaram se adaptando: nem todo mundo precisaria se tornar monge e se abster do sexo — e, portanto, da reprodução. Os budistas leigos poderiam continuar vivendo suas vidas normalmente, mantendo certos preceitos e acumulando karma com o objetivo de tornarem-se monges em reincarnações futuras. De todos os mitos, são esses os que acredito possuírem um grande valor.

Há, também, outros mitos, que posso chamar aqui de naturalistas ou vitalistas: crenças filosóficas que  consideram a vida como sendo irredutível à qualquer categoria que não seja ela própria. O vitalismo pode permear — e, na realidade, permeia — várias outras mitologias. Mas o vitalismo vai além, um pouco. Um sujeito pode ser vitalista apesar de ser apolítico e não ter crença religiosa. Basta ele considerar absurdo qualquer julgamento de valor a respeito da vida. Ele dirá: a vida é como ela é, e pronto, cabe a nós aceitarmos e vivermos.

Essa afirmação possui vários problemas, como pressupor que existe algo que não possa ser questionado, criticado ou alterado. A seleção natural não moldou nossa espécie para andar de avião e comer batata frita, mas fazemos isso frequentemente. Por definição, o ser humano é um animal que julga tudo, inclusive a vida, e não a aceita do jeito que é. Se aceitássemos, ainda seríamos caçadores e coletores na savana africana. Fora o fato de que não há um vitalista na face da Terra que não se aborreceria por sofrer uma injustiça ou por ser devorado vivo por um leão — duas coisas que fazem parte do jogo da vida e podem acontecer com qualquer um, basta estar no lugar e hora certos.