Diálogo entre a Natureza e um Islandês

Este texto, publicado originalmente no ano de 1827, foi escrito por Giacomo Leopardi, filósofo e poeta italiano. A tradução a seguir é minha. Utilizei uma edição inglesa da obra, de 1882. Os destaques em itálico são meus.

Leão devorando coelho, pintura de Eugene Delacroix

DIÁLOGO ENTRE A NATUREZA E UM ISLANDÊS

Um islandês, que viajou por quase toda a Terra e viveu em vários lugares diferentes, encontrou-se um dia no coração da África. Ao cruzar o equador em um lugar nunca antes penetrado pelo homem, ele viveu uma aventura como aquela ocorrida com Vasco da Gama, quem, ao passar pelo Cabo da Boa Esperança, foi oposto por dois gigantes dos mares do sul que tentaram impedir sua entrada em novas águas. O islandês avistou um enorme busto à distância que aparentava o colossal Hermes que tinha visto anteriormente na Ilha de Páscoa. Primeiro, ele pensou ser feito de pedra, mas quando chegou mais perto viu que a cabeça pertencia à uma enorme mulher que estava sentada no chão, descansando suas costas contra a montanha. A figura estava viva, tinha um semblante ao mesmo tempo magnífico e terrível, e olhos e cabelos negros como o azeviche. Ela o olhou fixamente por muito tempo. Finalmente, disse:

Natureza: Quem és tu? O que queres tu aqui, onde tua raça é desconhecida?

Islandês: Sou um pobre islandês, fugindo da Natureza. Fujo dela desde que era uma criança, passei por centenas de partes diferentes do mundo, e agora continuo fugindo dela.

Natureza: Assim também foge o esquilo da cascavel, e corre apressadamente e deliberadamente para a boca de seu atormentador. Eu sou aquilo do qual tu fugistes.

Islandês: Natureza?

Natureza: Ela mesma.

Islandês: Estou acometido de angústia, pois considero que nenhum outro infortúnio poderia me acontecer.

Natureza: Tu poderias ter imaginado que eu poderia ser encontrada nos países onde meu poder és supremo. Mas por que me evitas?

Islandês: Você deve saber que, desde minha tenra idade, a experiência me convenceu da vaidade da vida e da insensatez do homem. Vi estes lutando sem parar por prazeres fugazes e posses que não satisfazem. Vi eles infligindo e sofrendo voluntariamente dores infinitas que, ao contrário dos prazeres, eram bastante genuínas. Em suma, quanto mais ardentemente eles procuraram a felicidade, mais longe eles pareciam estar dela. Estas coisas fizeram com que eu abandonasse qualquer desígnio e vivesse uma vida de paz e obscuridade, sem machucar ninguém, esforçando-me em nada para melhorar minha condição, sem contestar nada com ninguém. Eu me desanimei de encontrar a felicidade, que considerei como negada à nossa raça, e meu único objetivo era proteger-me do sofrimento. Não que eu tenha tido a menor intenção de abster-me do trabalho, ou da labuta corporal; porque há uma grande diferença entre a mera fatiga e a dor, tanto quanto há entre a vida pacífica e a ociosa.
Porém, quando comecei a tocar o meu projeto, aprendi pela experiência o quão falacioso é pensar que um indivíduo pode viver inofensivamente entre os homens, sem ofendê-los. Apesar de sempre dar precedência a eles e tomar a menor parte em tudo, não descobri nem descanso nem felicidade entre eles. Entretanto, logo remediei isso. Ao evitar os homens eu me libertei das suas perseguições. Tomei refúgio na solitude — algo fácil de se obter na minha ilha nativa. Tendo feito isso, vivi sem uma sombra de alegria; contudo, descobri que não havia escapado de todo sofrimento. O frio intenso do longo inverno e o extremo calor do verão, característicos do país, não me permitiram parar a dor. E, quando para me aquecer, eu passava muito tempo perto do fogo, ficava chamuscado pelas chamas e cego pela fumaça. Sofri continuamente, estivesse ao ar livre ou no abrigo da minha cabana. Em suma, falhei em obter a vida de paz que era o meu único desejo. Tempestades terríveis, as ameaças e o troar do Hekla, e os constantes incêndios que ocorrem entre as casas de madeira do meu país, combinaram em manter-me em um perpétuo estado de inquietude. Aborrecimentos como esses, por mais triviais que possam ser quando a mente é distraída pelos pensamentos e ações da vida social e civil, são intensificados pela solidão. Eu aguentei todos eles, junto com a monotonia sem esperança da minha existência, somente para obter a tranquilidade que desejava. Percebi que quando mais me isolava dos homens e me confinava à minha própria pequenina esfera, menos sucesso tinha em me proteger dos desconfortos e sofrimentos do mundo externo.
Então, decidi tentar outros climas e países para ver se conseguiria viver em paz em algum lugar, sem machucar ninguém e existindo sem sofrimento, embora também sem prazer. Fui instado a isso pelo pensamento de que talvez você tivesse destinado à raça humana uma certa parte da Terra (como fez para muitos animais e plantas), onde ela pudesse viver confortavelmente. Neste caso, seria nossa própria culpa se sofríamos inconveniências por havermos excedido nossas fronteiras naturais. Portanto, estive sobre toda a Terra, testando cada país e sempre cumprindo minha intenção de incomodar os outros no menor grau possível, e não busquei nada para mim, exceto uma vida de tranquilidade. Mas foi em vão. O sol tropical me queimou; o frio ártico me congelou; em regiões temperadas as variações climáticas me trouxeram problemas; e em todo lugar experimentei a fúria dos elementos. Estive em lugares nos quais não se passa um dia sequer sem uma tempestade, e onde você, Ó Natureza, está em incessante guerra com o simples povo que nunca lhe fez nenhum mal. Em outros lugares, céus sem nuvens são compensados com terremotos frequentes, vulcões ativos e comoções subterrâneas. Em outros, furacões e  redemoinhos tomam o lugar de outros flagelos. Algumas vezes escutei o telhado sobre minha cabeça gemer com o peso da neve que suportava; outras vezes a terra, saturada pela chuva, cedeu sob meus pés. Rios transbordaram e me perseguiram, correndo a toda velocidade como se eu fosse um inimigo. Bestas selvagens tentaram me devorar, sem a menor provocação da minha parte. Serpentes procuraram me envenenar ou me esmagar; e eu quase fui morto por insetos. Não faço menção dos perigos diários pelos quais o homem está cercado. Estes últimos são tão numerosos que um antigo filósofo estabeleceu uma regra, que para resistir a influência do medo, era bom temer tudo.
Novamente, a doença não deixou de atormentar-me, embora fosse temperado e até abstêmio de todos os prazeres do corpo. Na verdade, nossa constituição natural é algo admiravelmente arranjado! Você nos inspira a ter um forte e incessante anseio por prazer, sem o qual nossa vida é imperfeita; e por outro lado você ordena que nada deveria ser mais oposto à saúde e à força física, mais calamitoso em seus efeitos, e mais incompatível com a duração da própria vida, do que esse mesmo prazer. Porém, embora não me permitisse prazeres, inúmeras doenças me atacaram, algumas das quais colocaram minha vida em perigo,  e outras, o uso de meus membros, ameaçando-me, assim, até o acesso à miséria. Todas, durante muitos dias ou meses, causaram-me a experiência de mil dores corporais e mentais. E, enquanto na doença, suportamos novos e extraordinários sofrimentos, como se nossa vida ordinária não fosse suficientemente infeliz; você não compensa isso nos dando períodos igualmente excepcionais de saúde e força, e consequente desfrute. Em regiões onde a neve nunca derrete, perdi a visão; esta é uma ocorrência comum entre os lapões em seu país frio. O Sol e o ar, coisas necessárias à vida e, portanto, inevitáveis, nos perturbam continuamente; este último por sua umidade ou severidade, o primeiro por seu calor e até mesmo sua luz; e a nenhum deles o homem pode permanecer exposto sem sofrer mais ou menos inconveniência ou dano. Em suma, não posso recordar um único dia durante o qual não tenha sofrido de alguma forma; enquanto, por outro lado, os dias que se passaram sem sombra de prazer são incontáveis. Concluo, portanto, que estamos destinados a sofrer muito em proporção à medida que desfrutamos pouco, e que é tão impossível viver pacificamente como felizmente. Eu também naturalmente chego à conclusão de que você é o inimigo declarado dos homens e de todas as outras criaturas de sua criação. Às vezes sedutora, outras vezes ameaçadora; hora atacando, hora batendo, hora perseguindo, hora destruindo; você está sempre empenhada em nos atormentar. Seja por hábito ou necessidade, você é a inimiga de sua própria família e a executora de sua própria carne e sangue. Quanto a mim, perdi toda a esperança. A experiência provou-me que, embora seja possível escapar dos homens e de suas perseguições, é impossível fugir de você, que nunca cessará de nos atormentar até que nos esmague debaixo do seu pé. A velhice, com toda a sua amargura, tristeza e acumulação de problemas, já está perto de mim. Este pior dos males você destinou para nós e para todas as criaturas, desde a infância. Do quinto brilho da vida, o declínio se manifesta; não temos poder para protelar seu progresso. Menos de um terço da vida é gasto na flor da juventude; apenas poucos momentos são reivindicados pela maturidade; todo o resto é uma decadência gradual, com os males que a acompanham.

Natureza: Pensas então que o mundo foi feito para ti? É hora de você saber que em meus projetos, operações e decretos, eu nunca pensei na felicidade ou infelicidade do homem. Se eu faço com que você sofra, não estou ciente do fato; nem percebo que posso de algum modo lhe dar prazer. O que eu faço não é, de forma alguma, feito para o seu prazer ou benefício, como você parece pensar. Finalmente, se eu por acaso exterminasse sua espécie, não iria saber disso.

Islandês: Suponhamos que um estranho me convidou para sua casa de uma maneira mais premente, e eu, para agradá-lo, aceitei seu convite. Na minha chegada, ele me levou a um lugar úmido e insalubre, me alojou em uma câmara à céu aberto, tão ruinosa que ameaçou momentaneamente desmoronar e me esmagar. Longe de se esforçar para me divertir e me deixar confortável, ele negligenciou em me fornecer até as necessidades da vida. E mais do que isso. Suponha que meu anfitrião tenha me deixado insultado, ridicularizado, ameaçado e espancado por seus filhos e família. E, quando me queixei de tais maus-tratos, ele respondeu: "Acha que eu criei esta casa para você?  Que guardo estes meus filhos e servos para o teu serviço? Eu te asseguro que tenho outras coisas para me ocupar ao invés do teu divertimento, ou fazê-lo sentir-se bem-vindo." Ao que eu respondi: "Bem, meu amigo, embora você possa não ter construído sua casa especialmente para mim, pelo menos poderia ter se abstido de convidar-me para cá. E, já que estou aqui por sua causa, não deveria eu confiar em você para assegurar-me, se possível, uma vida livre de problemas e perigos?"
Assim eu respondo a você. Estou bem ciente de que você não fez o mundo para o serviço dos homens. Era mais fácil acreditar que você o fez expressamente como um lugar de tormento para eles. Mas me diga: por que estou aqui? Eu pedi para vir ao mundo? Ou eu estou aqui anormalmente, contrariamente à sua vontade? Se, no entanto, você mesma me colocou aqui, sem me dar o poder de aceitação ou recusa deste dom da vida, você não deveria, na medida do possível, tentar me fazer feliz ou pelo menos preservar-me dos males e perigos que tornam minha jornada dolorosa? E o que digo de mim mesmo, digo de toda a raça humana e de toda criatura viva.

Natureza: Tu esqueceste que a vida do mundo é um ciclo perpétuo de produção e destruição, tão combinado que um trabalha para o bem do outro. Por sua operação conjunta, o universo é preservado. Se cessasse, o mundo se dissolveria. Portanto, se o sofrimento fosse removido da Terra, sua própria existência estaria em perigo.

Islandês: Assim dizem todos os filósofos. Mas, como aquilo que é destruído sofre, e o que nasce de sua destruição também sofre no devido tempo, e finalmente, por sua vez, é destruído, você poderia me esclarecer um ponto sobre o qual até agora nenhum filósofo me satisfez? É pelo prazer e a serviço de quem que esta miserável vida do mundo é mantida, através do sofrimento e morte de todos os seres que a compõem?

Enquanto eles discutiam essas e outras questões semelhantes, dizem que dois leões apareceram repentinamente. As feras estavam tão enfraquecidas e emaciadas de fome que mal conseguiram devorar o islandês. Elas conseguiram o feito no entanto, e assim ganharam força suficiente para viver até o final do dia.
Mas certas pessoas contestam esse fato. Elas afirmam que um violento vento surgiu, o infeliz islandês foi derrubado no chão e logo subjugado sob um magnífico mausoléu de areia. Aqui, seu cadáver ficou notavelmente preservado e, com o passar do tempo, ele foi transformado em uma bela múmia. Posteriormente, alguns viajantes descobriram o corpo e o carregaram como um espécime, depositando-o em um dos museus da Europa.