O elefante (evangélico) na sala

Certa vez, alguém muito querido me perguntou se eu via algum problema em trabalhar com um evangélico. Respondi que não teria. Essa pessoa não era evangélica, mas ficou aliviada com a minha resposta, visto que ela tem repulsa a qualquer tipo de preconceito. Karl Popper, em "A sociedade aberta e seus inimigos", formulou o paradoxo da tolerância: a tolerância ilimitada termina com o fim da tolerância. Isto quer dizer que qualquer sociedade que tolere os intolerantes pode vir a ser tornar uma sociedade intolerante. Nesta altura do campeonato, citar o exemplo da Alemanha de 1920 a 1930 já não deveria mais ser preciso.

Foto de Isac Nóbrega

Em 2010, o censo demográfico mostrou que tínhamos mais de 42 milhões de evangélicos no Brasil. Só para comparar, a população da Argentina em 2017 era de 44 milhões de pessoas. Entre 2000 e 2010, houve um crescimento de 61% no número de evangélicos no país. Isso não representa uma alternância religiosa normal, mas demonstra claramente a influência nociva que pastores e igrejas neopentecostais charlatãs têm sobre a população, geralmente a população mais pobre. Não que não tenhamos ricos que tornaram-se evangélicos, nós temos—mas, nesse caso, são pessoas simplórias, cognitivamente falando. Não foram as denominações protestantes tradicionais as responsáveis por esse aumento no número de evangélicos. A maior parcela do crescimento no número de protestantes no Brasil se deve à denominações neopentecostais, baseadas no puro charlatanismo da teologia da prosperidade.

Nas últimas eleições, 70% dos eleitores protestantes votaram em Jair Bolsonaro. Entre os eleitores católicos, Bolsonaro também ganhou, mas por pouco, ocorrendo quase um empate—51% contra 49%. Além disso, quanto maior o número de evangélicos em um estado da federação, maior a tendência desse estado a votar em Bolsonaro. O que isso quer dizer? Que católicos são melhores do que evangélicos? Que os ateus são melhores do que todos? Não. Não tem nada a ver com ser melhor ou pior. O problema é a facilidade com a qual os grupos podem ser manipulados, não apenas em termos econômicos, mas políticos. Tem sido notória a propaganda conservadora em igrejas neopentecostais—propaganda que já dura há décadas, mas que notamos agora por conta do crescimento no número de fiéis. O papel moralista conservador, que antes era reservado à Igreja Católica, passou a ser das denominações evangélicas neopentecostais. É inegável.

Isso é um problema grave para os que defendem o Estado laico e uma sociedade com valores progressistas, de tolerância e respeito à dignidade do outro em sua alteridade—desde que ela ocorra de forma à não prejudicar os outros, principalmente aqueles mais vulneráveis. Além desse problema, há ainda o fato de que, em grande parte, as narrativas políticas e econômicas difundidas dentro do ambiente evangélico—em sua maioria—são da glorificação do mercado e iniciativa particular—claro, sempre em função daquilo que é considerado "moral" dentro da ótica evangélica; eles não aprovam o mercado livre de filmes pornô, bebidas e drogas, por exemplo.

Peguemos um exemplo. É claro que a aversão da maior parte da nossa sociedade ao aborto vem do catolicismo. Mesmo pessoas que nem sequer praticam alguma religião tendem a não querer a legalização do aborto sem muita argumentação ou ponderação sobre o tema. Elas emitem suas opiniões como um reflexo rápido e impensado—elas, sem saber, ainda são influenciadas pela moral católica dominante, que continua a nos assombrar mesmo depois da Igreja ter perdido poder e fiéis no Brasil. Os evangélicos apenas tomaram para si a tocha da moralidade cristã deixada de lado pelo catolicismo brasileiro. E, pelo visto, estão querendo impor tal moral de maneira ainda mais agressiva. A Igreja Católica impôs seus valores, sim, mas existiam espaços para outras manifestações. O sincretismo com religiões africanas está aí como prova—sim, é claro que só houve sincretismo por conta da proibição às outras religiões que não fossem a católica, mas o fato da possibilidade de sincretismo ter sequer existido aponta para um domínio de espaços que não foi absoluto por parte da Igreja, por ineficiência ou por desleixo dela.

Com os evangélicos, a coisa parece ser diferente. Falo aqui dos membros das igrejas pentecostais e neopentecostais Em grande parte, eles querem o domínio absoluto de todos os espaços. Não acredita? Veja o que traficantes e outros bandidos evangélicos têm imposto em diversas comunidades no Rio de Janeiro e no Brasil afora. Terreiros de candomblé são destruídos, sacerdotes são ameaçados ou até mortos. E não são apenas bandidos "profissionais" que realizam esse tipo de ação. Pessoas ditas "de bem" também promovem ataques à terreiros e casas onde se praticam religiões africanas que eles, os evangélicos, acusam de serem adoradoras do diabo.

O que fazer? Uma alternativa é fechar todas as igrejas que promovem ativamente esse tipo de crença, justamente porque tolerá-las é tolerar o intolerante. Fechemos todas, a começar pelas mega-igrejas que pregam a teologia da prosperidade. Elas devem ter suas propriedades expropriadas, seus recursos devem servir ao benefício dos mais necessitados, e seus donos ("bispos", pastores, etc) deveriam ser presos, independente deles serem parlamentares—como é o caso de Marco Feliciano—ou não—Edir Macedo, Silas Malafaia, etc. Infelizmente, cobrar impostos de igrejas não é o suficiente, algumas delas precisariam ser fechadas. Mas é óbvio que isso não será feito. Por propor essas políticas, pessoas como eu serão vistas como intolerantes, e não eles. Pois bem, já estamos vendo o resultado de deixarmos esse tipo de ideologia solta na sociedade, e a coisa vai piorar muito daqui para frente. Não digam que não fomos avisados.

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Observação:
Creio ter deixado claro acima que o problema não é o protestantismo, mas sim o neoconservadorismo exploratório charlatão de igrejas caça-níquel, propagadoras de ódio e violência para com pessoas de outras religiões e para com o Estado laico. Tolerar essas igrejas em nome de um liberalismo absoluto é assinar o atestado de burro.


Referências: