O filme “Bacurau" e as péssimas críticas de Demétrio Magnoli e Samuel Pessôa na Folha de São Paulo

Assisti "Bacurau" e achei o filme muito bom. É perfeito? Não, nem de longe. Ele tem seus defeitos, mas eles não tornam o filme ruim. Porém, para Demétrio Magnoli e Samuel Pessôa da Folha de São Paulo, se você gostou do filme, você necessariamente apóia—ou coaduna por ignorância com—os gulags de Stalin, o genocídio de Pol Pot, O Grande Salto para Frente de Mao Tse-tung e as cagadas do Nicolas Maduro na Venezuela. No caso da Venezuela, Pessôa deixa explícita a ligação do regime de Maduro com o filme.


Só que há um problema nessa análise: não há ligação alguma. O que Pessôa tenta fazer é ligar o regime de Maduro, que diz ser de esquerda, com o filme, que passa uma mensagem assumidamente de esquerda e de resistência. Tirando isso, há zero ligações entre o que se passa no filme e o regime venezuelano. Mesmo a violência praticada pelo regime não tem a ver com a violência que ocorre na ficção "Bacurau". Antes de entrar em spoilers, podemos afirmar o seguinte: o que esses dois colunistas da Folha defendem—conscientemente ou não—é a existência de uma parcela enorme da população cujo único objetivo na vida é servi-los—com a própria vida, inclusive. Talvez Magnoli e Pessôa tenham vestido a carapuça de alguns personagens sobre os quais irei tratar mais adiante.

(Agora entrarei em spoilers, portanto, se você ainda não viu o filme e não quer saber o que se passa em "Bacurau", pare de ler aqui.)

O filme é uma ficção distópica em que o Brasil foi dividido. Há um "Brasil do sul", composto dos estados do sul—dos quais também fazem parte São Paulo e Rio de Janeiro—e o resto—norte e nordeste. É nesse resto que fica o pequeno vilarejo de Bacurau, no oeste pernambucano. Essa parte do Brasil virou uma espécie de terra de ninguém, esquecida e abandonada pelo resto do país, mais do que já é atualmente. Dentro desse cenário, estrangeiros oriundos de países do primeiro mundo—Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha—vêm ao nordeste brasileiro para matar pessoas por prazer. Alguns críticos que li afirmam que os estrangeiros vêm ao nordeste para "caçar pessoas", mas eles estão errados. Não há caça alguma. O modus operandi dessas expedições é tirar toda forma de reação de pequenos povoados e deixá-los sem nenhuma capacidade de defesa ou fuga. É extermínio por prazer.

As pessoas do vilarejo de Bacurau, no entanto, conseguem se defender. Elas se unem a um grupo fora-da-lei—que promove ataques violentos aos sulistas como forma de resistência política. Há alusões muito breves à Serra Maestra e à guerrilha cubana (suficiente parar irritar qualquer direitista que esteja na platéia). Quando o grupo de estrangeiros primeiro-mundistas chega ao vilarejo para o ataque, ele encontra resistência. Os gringos acabam sendo brutalmente mortos—e, dentro da lógica ficcional do filme, com toda a razão. Então qual é a razão da raiva que o filme deixa em pessoas como Magnoli e Pessôa? É bem simples. Na história, há um prefeito corrupto que vende a cidade para os gringos assassinos. Além dele, um casal de "sulistas"—a mulher é carioca e o homem parece ser de São Paulo—é contratado pelos gringos para ir à Bacurau instalar um bloqueador de sinal telefônico—o que corta a conexão do vilarejo com o mundo exterior. Esses dois personagens representam, no filme, os brasileiros direitistas puxa-sacos de americanos republicanos e (determinados) europeus.

Tanto Magnoli quanto Pessôa acham isso simplista demais e exagerado. Eles parecem não terem entendido o ponto do filme. É para ser simplista e é para ser exagerado mesmo. É uma obra de ficção. Há política no filme? Há. Parte dela pode ser criticada? Pode sim, sem problema algum. Talvez o filme glamourize demais a questão da revolta violenta? Talvez. Mas o que deixou a sala de cinema em silêncio—e talvez tenha irritado os dois colunistas da Folha, independentemente deles serem ou não do sudeste/sul do Brasil—foi o momento em que os dois personagens "sulistas" são tratados como seres inferiores pelos estrangeiros. Esse momento acontece quando eles voltam de sua missão de bloquear o sinal telefônico do vilarejo.

(É uma cena que só pode ser descrita como um tapa na boca de todos os brasileiros que estufam o peito para dizerem ser descendentes de europeus. Todo mundo sabe do que estou falando: brasileiros que fazem parte de uma classe média branca—que geralmente se acha mais branca do que é—que detesta manifestações de orgulho negro e que acredita que índios assimilados deixam de ser índios—uma lógica tosca, pois caso fosse assim, chineses, hebreus, indianos e núbios deixariam de ser chineses, hebreus, indianos e núbios no momento em que vestissem terno e gravata. Se você faz parte da classe média branca brasileira e tem mais de 35 anos, você certamente já teve essa experiência, ainda mais se vive pelos estados do sudeste e, principalmente, do sul. Talvez tenha até participado ativamente desse tipo de experiência. Meu pai é filho de uma grega e de um polonês que vieram para o Brasil no início da década de 1950, estou inserido nesse meio e falo com conhecimento de causa.)

Esses dois personagens brasileiros "sulistas" acreditam fazer parte do grupo dos estrangeiros. Porém, em um determinado momento, por conta de um erro cometido por eles—eles matam dois homens de Bacurau antes de retornar à base—, os gringos começam a hostilizá-los. Isso acontece durante uma reunião. Os sulistas começam a ser ridicularizados e inferiorizados pelos estrangeiros. Os dois tentam, sem sucesso, dizer que são brancos, descendentes de italianos e alemães, mas os verdadeiros brancos não querem saber de conversa. Eles os ridicularizam mais ainda, afirmando que os dois não são brancos de verdade. O inglês diz que a mulher se passaria, no máximo, por uma polonesa, enquanto que outros dizem que o paulista seria um mero italiano—momento em que as mulheres americanas começam a chamá-lo de "latino bonitão", tudo em inglês, óbvio. Transtornados, os dois brasileiros tentam conversar em português entre si, mas o chefe da expedição, um alemão, representado por Udo Kier, diz para eles pararem de falar em "brasileiro". Ambos são mortos, descartados como lixo.

Novamente, Magnoli e Pessôa parecem não entender o ponto do filme. Ou talvez eles entendam e discordem dos heróis, por concordarem com os antagonistas assassinos do filme. Ambos se remoem de raiva e frustração por discordarem da visão (supostamente) simplista dos americanos e europeus como imperialistas. Acontece que, no filme, os americanos e europeus não estão ali como agentes do imperialismo. Eles estão ali para matar por diversão. Não há roubo de recursos, nem imposição de um modelo econômico—os gringos de "Bacurau" são racistas que querem se divertir matando pessoas que eles consideram como sendo inferiores a eles, e ponto final. A questão do imperialismo, do roubo de recursos, de terras e expansão de mercados não é tratada em momento algum no filme. Não é um filme sobre imperialismo, pelo menos não diretamente, é um filme sobre racismo e sobre a burrice de brasileiros que se acham superiores por terem um sobrenome que soa chique.

Sim, o filme passa uma visão simplificada e exagerada do real, pois é uma fantasia. O problema que Magnoli e Pessôa se recusam a enxergar, por estarem cegos de ideologia, é que o filme "Bacurau" é uma fantasia que faz alusão à coisas que são muito reais. Esses dois colunistas acreditam que os estrangeiros são retratados de uma forma simplória. Sim, são. Mas o retrato não é tão distante da realidade. Os gringos de "Bacurau", apesar de serem simplificados e exagerados, possuem uma correspondência com a realidade. Vivi cinco anos de minha vida nos Estados Unidos. Muito embora boa parte das pessoas que conheci lá sejam amáveis e boas, posso afirmar que existe uma quantidade enorme de americanos que se encaixa perfeitamente no estereótipo mais grotesco de eleitor de Trump—embora eles não sejam maioria, visto que Trump perdeu no voto popular por alguns milhões em 2016. O que quero dizer com "estereótipo mais grotesco de eleitor de Trump"? Pessoas assumidamente racistas, segregacionistas e outras desgraças ainda piores. Essa gente existe. Não apenas ouvi falar delas, mas as vi, cara a cara, durante anos.

As coisas que saem no noticiário mainstream—e Fox News não é um deles—não são teorias conspiratórias do "marxismo cultural", como querem fazer crer esses protótipos de Jordan Peterson brasileiros. Assim como aqui, por exemplo, a polícia americana mata desproporcionalmente mais negros do que brancos, inclusive quando ajustamos para situações em que nenhum crime ocorreu. A realidade é que, por mais que "Bacurau" seja uma extrapolação, ela não é uma extrapolação sem fundamentos—e quando olhamos a atuação de vários militares americanos no Vietnã, no Iraque e no Afeganistão, incluindo nessa conta a atuação de empresas como a Blackwater no Iraque, veremos que muitos deles mataram nativos por prazer. E antes fossem casos isolados. Não foram. Se voltarmos só mais um pouco na história, veremos como os americanos genocidaram os nativos e como eles trataram os escravos negros. Veremos, também, as barbáries cometidas pela Alemanha e, principalmente, pela Inglaterra. Os ingleses, no auge da sua pregação liberal, entre os séculos XIX e XX, cometeram atrocidades absurdas contra rebeldes indianos. Até o tão admirado Winston Churchill promoveu massacres e fome proposital na colônia, causando milhões de mortes entre os indianos.

Em determinado momento, um desses dois colunistas chega a afirmar que revoluções violentas não levam a nada de bom, citando a Revolução Francesa e a Revolução Russa. Esquece-se da Revolução Americana, convenientemente. Ela também foi violenta. Além do que, é patético atrelar a violência de uma revolução à necessidade da violência de um regime pós-revolucionário. Mais patético ainda é tentar passar pano para o Antigo Regime francês e ao czarismo russo. Independente do caos gerado após essas revoluções, o fato é que esses dois regimes eram absurdamente injustos e assassinos. "Mas as revoluções e regimes que vieram mataram mais gente!" Sim, mataram. E é uma lástima que tenha acontecido. Mas isso não muda a realidade de que algo precisava ser feito—e que nada seria feito pacificamente.

O que a população deveria fazer frente ao absolutismo daqueles monarcas? Curvar-se e levantar o traseiro, pedindo mais? Não, Demétrio. Não, Samuel. Aquelas revoluções não vieram por conta de uma nuvem maligna subversiva, que apareceu para estragar algo que era bom. Aqueles regimes eram horrendos. Se fossem bons, o povo não teria apoiado as revoluções—e o povo, em sua maioria, apoiou ambas. Enquanto que podemos lamentar os corpos dos inocentes que morreram depois das revoluções, inclusive as crianças do czar, não podemos lamentar a morte do próprio czar e nem do próprio rei da França. O povo lamentar a morte do czar russo e do rei francês seria o mesmo que lamentar a morte do seu algoz direto, aquele que é o principal responsável por sua família passar fome e ser subjugada. O czar e o rei foram mortos justamente. Injustiça teria sido deixá-los vivos.

"Bacurau" é um filme político? Sim. Tem exageros e arquétipos simplificados? Com toda certeza. Mas, no geral, o filme lida muito bem com todas essas coisas. O filme peca em alguns aspectos? Claro que sim. Mas é uma ficção distópica, uma realidade alternativa usada para extrapolar temas que permeiam o presente de maneira gritante. Só não verão isso as pessoas que vestirem a carapuça e se enxergarem nos personagens mais mesquinhos do filme, os dois brasileiros "sulistas".


Referências:
1. 'Bacurau' é testemunho da extinção de vida inteligente na esquerda brasileira
2. Em 'Bacurau', o inferno são os outros
3. Over 1,000 Hate Groups Are Now Active in United States, Civil Rights Group Says
4. Hate groups reach record high
5. PIGS (economics)
6. Getting killed by police is a leading cause of death for young black men in America
7. 'Worst war crime' committed by US in Iraq
8. Atrocities and Criminal Homicides in Iraq
9. Nisour Square massacre
10. What Trump's pardon of war criminals says about US policy in Afghanistan
11. ICC rejects request to investigate war crimes in Afghanistan
12. Was My Lai just one of many massacres in Vietnam War?
13. When Native Americans Were Slaughtered in the Name of ‘Civilization’
14. 5 of the worst atrocities carried out by the British Empire
15. Genocide of indigenous peoples - British Empire
16. Winston Churchill has as much blood on his hands as the worst genocidal dictators, claims Indian politician
17. Churchill's policies contributed to 1943 Bengal famine – study
18. A jarring death penalty: execution by cannon