A filosofia política e os dados empíricos explicam por que o liberalismo fracassa no mundo e por que ele não fará do Brasil um país melhor


ANACRONISMOS E CRENDICES
Quando defendia o liberalismo à moda pseudo-clássica, acreditava que bastava o Estado sair da frente que a iniciativa privada melhoraria tudo, quase que por mágica, graças ao incentivo da busca pelo lucro. Minha leitura de Marx e de outros pensadores críticos do capitalismo era bastante porca, e ficava claro pelas coisas que dizia e escrevia. Porém, ainda assim, acreditava ter um conhecimento enorme. Tendo estudado um pouco mais desses pensadores com professores (ao invés de charlatões), hoje noto uma coisa estranha, mas interessante: tenho a sensação de saber infinitamente menos do que acreditava saber anos atrás, muito embora tenha tido mais contato com a teoria através dos professores e das leituras que me foram indicadas na universidade. Olavistas, bolsonaristas, liberais, anarco-capitalistas, etc, dirão que sofri "doutrinação comunista", mas eles estarão errados, pois já havia abandonado o liberalismo ao final da minha primeira graduação, em ciências econômicas, cursada numa universidade americana tradicional. Além do que, apesar de ser crítico do liberalismo e apesar de beber de pensadores críticos do capitalismo, como Marx, não defendo o comunismo, especialmente os movimentos e partidos que tomaram poder em certos países ao longo do século XX.

O que acontecia comigo? Como conseguia supor ser tão sábio? Aconteceu comigo o que acontece com todos os idiotas que pensam ter chegado a um conhecimento inquestionável depois de pouquíssima investigação: encontrei-me sob o efeito Dunning-Kruger. As soluções simplificadas e dogmáticas propagadas pelos adeptos do liberalismo—soluções que regurgitei durante anos—não levam em conta fatores históricos—e levam menos em conta ainda artigos científicos corroborados por observação e testes econométricos—, porque são soluções que partem do princípio que o ser humano, como ser social, funciona do mesmo jeito, independente do período e do modo de produção no qual ele está inserido. Elas não levam em conta as particularidades históricas, geográficas e sociais que nos cercam. Projetam um homem atomizado e individualista até os primórdios da espécie humana e partem do princípio que tudo o que ocorreu ao longo da história política da humanidade foram desvios que travaram o desenvolvimento da livre iniciativa. Isto é: depois de inventarem uma dicotomia falaciosa entre "sociedade composta de indivíduos atomizados" e "Estado interventor que impede a livre iniciativa particular e a prosperidade geral", projetam essa invenção simplista para o passado.

O fato é que o liberalismo econômico já não dava certo para a maioria das pessoas no século XIX, o século de seu primeiro ápice. Pouquíssimas pessoas se beneficiavam amplamente dele. Somente aos trancos e barrancos que trabalhadores do mundo industrial passaram a ter dignidade e o direito de não serem explorados até a alma.1,2,3 Para comparar períodos liberais com períodos menos liberais economicamente, peguemos o exemplo da sociedade americana no século XX. O maior crescimento da classe média americana não se deu nos períodos em que o Estado mal intervia na economia, foi o contrário. O mesmo aconteceu na Grã-Bretanha. A maior expansão da classe média americana se deu entre as décadas de 1950 e 1970, justamente a época de maior redistribuição de renda por parte do governo federal dos Estados Unidos, com impostos de 70% (ou mais) para os mais ricos.4,5 Nos últimos 30-40 anos, o liberalismo tem dado menos certo ainda, graças às mudanças que ocorreram no mundo. Novas tecnologias tornam obsoletos até trabalhadores altamente qualificados. A desregulamentação do mercado financeiro proporciona a possibilidade de multiplicar fortunas vivendo de juros—que na sua maior parte não correspondem à um crescimento na economia real. Num de meus textos anteriores escrevi o seguinte:
Continuaremos acreditando que a desoneração da folha de pagamentos dos ricos fará com que eles invistam na produção (o suficiente para gerar dezenas de milhões de empregos), sem entender que eles teriam que ter incentivos gigantescos para tirar a maior parte de seu dinheiro do mercado financeiro, setor da economia em que não precisam se preocupar com a administração de empresas e indústrias. Continuaremos tendo um sistema de impostos regressivo, onde o pobre paga mais do que o rico em proporção aos seus ganhos. Continuaremos com a constante precarização do trabalho, acreditando que o acúmulo de capital beneficiará a todos. Educação precária, trabalho precário, sentimento de abandono e injustiças absurdas.
Recentemente, uma pré-candidata à presidência dos Estados Unidos pelo partido democrata, Elizabeth Warren, teve seu plano de aumento de impostos para os mais ricos atacado pela direita americana. Chamaram-na de louca. Afirmaram que a economia iria colapsar se tal plano fosse colocado em prática. Deram os seguintes exemplos: a fortuna de Jeff Bezos cairia de 160 bilhões de dólares para 86,8 bilhões; Bill Gates deixaria de ter 97 bilhões e passaria a ter 36,4 bilhões; Warren Buffet iria de 88,3 bilhões para 29,6 bilhões; e Mark Zuckerberg sairia de 58,4 bilhões para meros 23,5 bilhões. Parece piada, mas não é. Existem pessoas que acham que Bezos ver sua fortuna ir de 160 bilhões de dólares para 86 bilhões é o fim do mundo, um "roubo", um prelúdio do colapso econômico. Essas mesmas pessoas não veem problema algum no fato da maioria dos trabalhadores americanos terem seus salários estagnados desde meados da década de 1970—apesar de produzirem muito mais e serem muito mais qualificados. Essas pessoas também não enxergam problema no fato de que os ricos viram suas fortunas aumentarem absurdamente de lá para cá. E a direita brasileira quer importar o modelo americano dos últimos 40 anos para o Brasil, achando que nos tornaremos um país rico assim.

Alguém poderia levantar alguns questionamentos, como, por exemplo: "qual resposta você pretende dar para isso? Os regimes socialistas fracassaram. Foram autoritários, utilizaram até fomes programadas contra populações que se opuseram às suas políticas. Fora que havia enorme ineficiência devido à impossibilidade do cálculo econômico no regime socialista, visto que não há flutuação livre de preços nesse regime, o que gera miséria humana. Aprendi isso com o Instituto Mises."

Se por "regimes socialistas" a pessoa se refere exclusivamente às economias de planejamento e comando centralizado, como, por exemplo, a antiga União Soviética e a China maoista, então a resposta que tenho para dar é a seguinte: isso não é uma alternativa boa. Esses regimes foram extremamente autoritários e nenhuma crítica ao modo de produção capitalista contemporâneo os torna mais atraentes. Agora, há um problema de argumentação recorrente quando se afirmam que esses regimes foram ao mesmo tempo capazes de promover fomes programadas contra parte de sua própria população e ineficientes ao ponto de gerar miséria humana. Veja, o sujeito não pode afirmar que URSS e China maoista eram eficientes o suficiente para eliminar parte de sua própria população administrando recursos escassos (como comida) e, ao mesmo tempo, afirmar que esses regimes eram ineficientes ao ponto de não conseguir administrar seus recursos, gerando miséria humana (inclusive fome). Ou afirmam uma coisa ou outra. As duas, simultaneamente, não.

Fora que o argumento da impossibilidade de cálculo econômico no regime socialista é apenas uma hipótese defendida por alguns pensadores liberais, especificamente os membros da Escola Austríaca. Ela não é comprovada e nem sequer é  superior à outra tese, também liberal, que afirma existir pouco incentivo à produção e ao trabalho nos regimes socialistas—porém, ainda assim, a hipótese da impossibilidade de cálculo econômico no regime socialista é tratada pelos liberais da Escola Austríaca como o argumento superior, uma espécie de "cheque-mate" contra o socialismo. No entanto, mesmo dentro da ótica liberal e pró-capitalista, existem críticas contundentes à hipótese "austríaca" da impossibilidade de cálculo econômico no sistema socialista—sempre levando em conta que a expressão "sistema socialista" utilizada aqui refere-se exclusivamente aos regimes monolíticos e centralizados do século XX, como União Soviética e China maoista, e não alternativas democráticas e descentralizadas.

A argumentação liberal que mais está em evidência nos últimos anos no Brasil—que, infelizmente, segue coisas muito piores que Friedman, autores como Mises e Rothbard, por exemplo—tapa o sol com a peneira da maneira mais tosca imaginável. A verdade é que o liberalismo fracassou, no sentido de não cumprir suas promessas de aumento de riquezas para todos. Há uma manutenção de uma casta rica, enquanto a maioria se digladia na base da pirâmide sócio-econômica. Se considerarmos história e geografia, houve substancial aumento da classe média e diminuição da pobreza principalmente nos períodos e nos lugares em que o Estado interviu de forma a redistribuir riquezas, e não o contrário. Isso é uma pílula difícil de engolir quando se aceita as premissas da filosofia liberal clássica (e sua versão atualizada do século XX), que afirma que todos se beneficiam do livre mercado. É um sistema que prometeu trazer mobilidade social, desde que as pessoas se esforçassem, o que praticamente não ocorre. Mais de 60% da riqueza nos Estados Unidos é herdada e, na média, essa riqueza acaba nas mãos de algum membro das famílias que compõem as 5% mais ricas daquele país. O problema é exacerbado com a crença infantil na meritocracia—um mito estúpido que deveríamos jogar na lata do lixo de uma vez por todas.

Tratei dos Estados Unidos, mas no Brasil a coisa consegue ser ainda pior. O IBGE mostrou recentemente que metade dos brasileiros vive com R$ 413 por mês e cerca de 13 milhões vive com apenas R$ 8 por dia. E qual a resposta que nossas autoridades querem dar com a reforma tributária que está por vir? Manter a regressividade dos impostos. Aliás, piorá-la, fazendo os pobres arcarem ainda mais do peso dos tributos. Acreditam que os ricos brasileiros estão dispostos a aumentar salários e prover benesses para uma população desescolarizada e uma mão-de-obra precarizada, desde que o Estado não tire um único centavo deles para financiar o bem-estar da população com programas sociais. Mas isso vai falhar. Aliás, já está falhando. Não acontecerá recuperação econômica robusta o suficiente para melhorar a vida das pessoas radicalmente apenas desonerando os mais ricos, como a reforma trabalhista e a reforma da previdência têm nos mostrado. O sistema capitalista liberal, tanto aqui quanto no resto do mundo, é uma continuidade e um exacerbamento da aristocracia. Volta e meia, algumas poucas pessoas têm sorte e conseguem subir na vida através do esforço próprio, dando a entender que o sistema é justo, mas ele não é. E mesmo essas pessoas, geralmente muito qualificadas, nunca ganharão tanto quanto os acionistas majoritários das empresas onde trabalham—acionistas que, na maior parte, herdaram suas fortunas.

UMA BREVE HISTÓRIA DA ASCENSÃO DO CAPITALISMO
No final do século XVIII, ocorreram duas revoluções burguesas de extrema importância histórica, uma na América do Norte e outra na Europa. Em 1776, representantes de treze colônias inglesas declararam independência da coroa britânica. Esse movimento foi liderado por fazendeiros escravocratas ricos que estavam cansados de pagar tributos para a Inglaterra. Os Founding Fathers comandaram as tropas, que eram compostas de colonos pobres, e conquistaram a independência dos Estados Unidos. Alguns anos depois, em 1789, a burguesia e os trabalhadores franceses (o Terceiro Estado), cansados de sustentar o clero e a nobreza (Primeiro e Segundo Estados), puseram abaixo o Antigo Regime, decapitando o rei e a rainha. A Revolução Francesa deu início a uma série de conflitos que só foram terminar ao final das Guerras Napoleônicas. Apesar das diferenças entre os dois eventos, em ambos os casos a configuração do Estado foi alterada de forma que a burguesia nacional pudesse se desenvolver. Na França, ao final do processo revolucionário, o Estado foi modernizado e passou a contribuir para o desenvolvimento da indústria e comércio. Essa modernização foi copiada por outros Estados europeus, inclusive. Nos Estados Unidos, as políticas não foram exatamente as mesmas, mas o objetivo de fortalecimento da burguesia comercial e industrial sim.

No caso francês, houve uma segunda revolução após a primeira: a tomada do poder pelos jacobinos, que radicalizaram as pautas revolucionárias, instaurando o Terror como política de Estado. Enquanto que muitos dos que participaram na primeira revolução achavam que o fim da monarquia já era vitória suficiente, os jacobinos acreditam ser necessário ir além de uma mera mudança de poder. Para eles, era necessário que vários privilégios ainda vigentes na França—inclusive os privilégios econômicos da alta burguesia—fossem revistos. No final das contas, os jacobinos perderam e foram dizimados. Eventualmente, Napoleão chegou ao poder com o apoio da alta burguesia e de parte da antiga aristocracia. Por mais que ele tenha guerreado com outras nações europeias, a racionalização promovida dentro da máquina estatal francesa trouxe enormes benefícios para o país—mas a maior parcela desses ganhos foi para a burguesia, claro. No caso dos Estados Unidos, desde o princípio, os Founding Fathers foram claros sobre quais normas o novo país iria adotar. Havia coesão entre as lideranças americanas, característica quase que inexistente entre os revolucionários franceses em 1789. Nos Estados Unidos, não existiu radicalização da revolução, pois quase não existiam vozes radicais dentro do movimento—e as poucas que existiam não tinham muito poder (e.g. Thomas Paine).

Uma das características mais bizarras da democracia representativa americana que existe até hoje é o voto indireto para presidência. Os americanos votam em um candidato, mas cada estado da federação tem um número de delegados no colégio eleitoral—proporcional à sua população—que confirmam a vontade do povo (ou não, como já aconteceu no passado). Isso já gerou situações absurdas, como a vitória de candidatos à presidência que perderam no voto popular, às vezes por grande margem. Por exemplo: em 2000, George W. Bush venceu a eleição contra Al Gore, mesmo tendo perdido no voto popular; o mesmo ocorreu em 2016, quando Trump perdeu para Hillary no voto popular por cerca de 3 milhões de votos. É notório que os Founding Fathers não confiavam no voto direto. Eles não acreditavam que o povo deveria ter tanto poder, pois tinham medo de que, através da democracia, eles perdessem seus privilégios como donos de terras e herdeiros de velhos aristocratas. Em 1787, James Madison escreveu:
Porém, a mais comum e durável fonte de divisões tem sido a distribuição variada e desigual da propriedade. Aqueles que detêm e aqueles que não detêm propriedade sempre tiveram interesses distintos na sociedade. [...] Uma paixão ou interesse comum será compartilhado pela maioria em quase todos os casos [...] e não há forma de conter os incentivos para sacrificar a parte mais fraca ou um indivíduo detestável. Por esta razão [...] as democracias sempre foram incompatíveis com a segurança pessoal ou o direito à propriedade; e elas foram, em geral, tão curtas em sua vida quanto violentas em sua morte.
Nesse escrito, Madison—que viria a se tornar o 4º presidente dos Estados Unidos—ecoou um pensamento que permeia toda a teoria marxiana: a luta de classes. É como se um burguês estivesse admitindo, décadas antes de Marx nascer, que as classes têm interesses completamente distintos. No ensaio citado, Madison argumenta que as leis do país precisavam ser rigorosas na proteção às minorias—não no sentido contemporâneo da ideia, mas no sentido de que os proprietários de terra, donos de indústrias e banqueiros deveriam ser protegidos da possibilidade de uma revolta que colocasse em questão o poder econômico da nova elite americana, agora independente da Inglaterra. A "minoria" que Madison escreveu sobre são os ricos, donos dos meios de produção. Após a independência americana, a rebelião de Shays—um ex-soldado da revolução que fora ferido em batalha contra os ingleses—juntou alguns milhares de ex-soldados em protesto contra injustiças econômicas e em favor de direitos civis. O movimento durou dois anos, de 1786 a 1787, e foi esmagado pelas milícias do estado de Massachusetts. A constituição americana, fortemente influenciada por Madison, foi ratificada pouco tempo depois, dando maiores poderes ao governo federal para lidar com rebeldes—todos aqueles que não se conformassem com a nova república e seus mecanismos de manutenção das classes dominantes.

Em grande parte, o mundo que herdamos no século XXI é o desdobramento da visão de mundo dos proprietários de terra, industriais e banqueiros dos séculos XVIII e XIX—ou seja, a visão da alta burguesia europeia e norte-americana. Somos os filhos das revoluções burguesas, que ocorreram em outros lugares além da França e América do Norte, através de processos diversos, como no caso da Inglaterra. Os valores burgueses deixaram uma marca profunda em todas as culturas do mundo, para pior ou para melhor, e as alternativas que se desenvolveram ao capitalismo no século XX fracassaram de forma fantástica. Na Europa Oriental, os regimes autoritários colapsaram por completo, enquanto que em lugares como China e Vietnã, o partidão manteve o poder político mas, ao mesmo tempo, abriu a economia para o capitalismo mais predatório e desumano possível. No mundo inteiro, vivemos à sombra de uma crença dominante que aponta para o mercado livre como solução de todos os males, enquanto que o Estado seria sempre o causador de todos os problemas—uma visão tão ou mais simplista que a contrária.

***

Existem evidências empíricas claras (ver nas referências) de que, por mais que os trabalhadores das economias industriais produzam muito mais do que há quatro décadas atrás, seu salário continua praticamente estagnado. Enquanto isso, o lucro dos patrões aumentou vertiginosamente. Esse problema é ainda maior nas economias mais desreguladas. Já os países capitalistas que têm um Estado mais presente—que cobra impostos altos dos ricos e redistribui os recursos na forma de serviços públicos de alta qualidade—têm maior mobilidade social e melhor qualidade de vida. Por exemplo: Noruega e Suécia, duas social-democracias, possuem mobilidade social maior do que os Estados Unidos, um país mais liberal, além de terem um Índice de Desenvolvimento Humano maior. Mesmo entre os conservadores, há crescente descontentamento com políticas econômicas liberais. Trump não foi eleito falando em livre comércio, mas prometendo protecionismo. Movimentos neofascistas europeus têm batido em teclas similares. No Brasil, Bolsonaro era nacional-desenvolvimentista até pouco tempo atrás—foi necessário que seus filhos o convencessem que Paulo Guedes era um "gênio" para Bolsonaro aceitá-lo como ministro da economia; e tal aliança parece não estar mais dando tão certo assim, visto que Bolsonaro e outros membros do governo estão se coçando para abandonar o teto de gastos e injetar dinheiro público na economia. E quem pode culpá-los? A recuperação prometida por Guedes não está nem perto de se concretizar—aliás, uma recuperação que promova um fortalecimento da classe média não acontecerá sem algum tipo de intervenção governamental.

Soluções e alternativas existem. Elas vão da total derrubada do sistema até alternativas de conciliação de classes, política que alguns países tentaram adotar no início dos anos 2000—o Brasil foi um deles. Mas essa última opção foi rechaçada nos últimos anos em favor de uma aceleração da proposta econômica liberal. Por mais que Trump tenha sido eleito com um discurso protecionista e por mais que ele entre em guerra comercial com a China, suas políticas tributárias e regulatórias favorecem apenas os americanos mais ricos. No Brasil, apesar de Bolsonaro não entender absolutamente nada de economia e ter se "convertido" ao liberalismo apenas recentemente, ele continua dando o braço a torcer para Guedes e seu projeto de corte de gastos sociais como forma de "atrair investimento privado"—muito embora a maior parte do orçamento da União (quase a metade) seja usado não em gastos sociais, mas para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública, dívida que foi (e ainda é) contraída, na sua maior parte, de maneira espúria.

A realidade aponta para o fracasso do sistema liberal, o que não significa que ele não possa funcionar por muito tempo, talvez até indefinidamente. Infelizmente, as pessoas parecem se acostumar ao domínio e até à pobreza gritante. Contudo, independente delas se acostumarem ou não, o sistema fracassa porque não traz os benefícios que promete para a maioria das pessoas. O que ele traz são ilusões e uma espécie de contentamento das massas, sempre ávidas a seguirem o ideário dos detentores do poder político e econômico. As pessoas digladiam entre si para ver quem fica por cima. A maioria luta a vida toda para não acabar engolida pelo desespero da pobreza. Enquanto isso, a maior parte da riqueza do mundo é herdada. Mesmo assim, a ideologia da classe dominante sempre afirmará que o culpado pela pobreza é o próprio pobre, sem exceção. As classes dominantes nunca reconhecerão que o sistema tem embutido dentro dele a produção de uma quantidade inimaginável de "perdedores", muito embora existam bilionários que sabem disso e até falam abertamente. Neste mundo, mesmo aqueles que são muito produtivos nadam contra a corrente, salvo uma parcela bem pequena de trabalhadores altamente especializados—e mesmo esses ainda ganham bem abaixo do que deveriam, quando observamos o valor que trazem para suas empresas e corporações.

O sistema fracassou, porque é de sua natureza fracassar. Seu desenvolvimento contempla apenas a acumulação e o ganho particular, enquanto que sua principal teoria promove a ideia de que todos se beneficiam quando buscam apenas acumulação e ganhos particulares. Em "A Riqueza das Nações", Adam Smith escreve:
Este aperfeiçoamento das condições das classes inferiores do povo deve ser visto como vantagem ou inconveniência para a sociedade? A resposta, à primeira vista, parece abundantemente simples. Servos, trabalhadores e operários de vários tipos formam a grande maioria de toda grande sociedade política. Mas o que melhora as circunstâncias da maioria, nunca pode ser visto como inconveniência para o todo. Nenhuma sociedade pode, seguramente, estar florescendo e feliz na qual a maioria de seus membros está infeliz e miserável. É apenas equidade, além do mais, que aqueles que alimentam, vestem e alojam todo o corpo do povo tenham tal fração do produto do próprio trabalho de modo que eles mesmos fiquem toleravelmente bem alimentados, vestidos e alojados.
Smith argumentou que tal aperfeiçoamento das condições das classes inferiores vem justamente por conta do livre mercado, porque era isso que suas investigações faziam-no crer. Fica claro, contudo, que esse não tem sido o resultado após trezentos anos de experimentos em políticas econômicas liberais. Novamente, peguemos o exemplo da maior expansão da classe média americana, que se tornou a sociedade mais rica do planeta no pós-Segunda Guerra Mundial: essa expansão se deve não ao livre mercado, mas à políticas de redistribuição de renda por parte do governo federal dos Estados Unidos. Apesar de acreditar que o livre mercado traz benefícios para todos, também fica claro que, para Smith, uma sociedade na qual a maioria é infeliz e miserável, onde aqueles que trabalham não têm o mínimo de dignidade ("eles mesmos fiquem toleravelmente bem alimentados, vestidos e alojados"), não possui equidade. Chega a ser um tanto alarmante quando podemos usar as palavras de Adam Smith—o primeiro grande defensor do liberalismo econômico—para criticar o capitalismo liberal contemporâneo e as mazelas que ele causa ou, no mínimo, é incapaz de resolver.

Smith hoje provavelmente teria nojo da defesa religiosa que muitos fazem dessas políticas econômicas.


Referências:




1. Industrial Revolution was powered by child slaves
2. Labor Movement in the Industrial Revolution
3. Movimento operário no século XIX
4. When the Top U.S. Tax Rate was 70 Percent—or Higher
5. 60 Years of American Economic History, Told in 1 Graph








1. Why does financial sector growth crowd out real economic growth? by Stephen G Cecchetti and Enisse Kharroubi -- Monetary and Economic Department, Bank of International Settlements

2. Setor financeiro muito grande prejudica economia, diz estudo






4. Richest Could Lose Hundreds of Billions Under Warren's Wealth Tax

5. Why I Am Not an Austrian Economist

6. Towards a New Socialism

7. People like the estate tax a whole lot more when they learn how wealth is distributed

8. Brazil: extreme inequality in numbers

9. Rich–poor gap widens in Brazil

10. Brazilian poor take up to nine generations to reach average income
11.
12. Meritocracia: o que não costumam contar (#Pirula 233)
13. Brasileiros com alta renda são menos tributados que na média dos países mais industrializados, aponta pesquisa
14. Faithless elector
15. Federalist No. 10 (1787)
16. Class Struggle and the American Revolution
17. America Is Living James Madison’s Nightmare
18. The Founding Fathers Never Intended To Create A Direct Democracy
19. Disturbing finding from LSE study: social-mobility in Britain lower than other advanced countries and declining
20. Americans overestimate social mobility in their country - But in Europe, climbing the ladder is easier than most people believe
21. The mobility myth
22. Equipe econômica de Bolsonaro quer flexibilizar o teto de gastos
23. Bolsonaro defende 'preservar' teto de gastos um dia após ter dito que mudança é questão 'matemática'
24. Após veto de Bolsonaro, Guedes volta a defender imposto sobre pagamentos
25. Study Finds Trump Tax Cuts Failed to Do Anything But Give Rich People Money
26. The president says more tax cuts are on the table. You might want to be skeptical of that one.
27. Explicação sobre o gráfico do orçamento elaborado pela auditoria cidadã da dívida
28. The Productivity–Pay Gap
29. Americans are working harder these days. Their paychecks don’t show it. Productivity is up and unemployment is low. So why aren’t workers benefiting yet?
30. The Problem With Inequality, According to Adam Smith
31. Adam Smith on Wall Street