Não se procria em Patmos

São Francisco meditando, por Francisco Zurbarán

Apesar de tirar a conclusão antinatalista do pessimismo cósmico, isto é, apesar de concordar que a melhor coisa que podemos fazer para evitar a perpetuação do sofrimento é nos abstermos da reprodução, não gosto de indiciar constantemente aqueles que são pais, porque desprezo qualquer tipo de ultraje moral. Acredito que revoltas morais são o tipo de porcaria que leva a momentos como o infame “pânico satânico” dos anos 1980 e 1990, além das suas versões mais novas.

No entanto, esses dias vi um tweet que dizia o seguinte, traduzindo livremente do inglês:
“Eu tenho 45. É muito provável que a nossa civilização entre em colapso antes que meu filho de 9 anos tenha a idade que tenho agora. Esta é a realidade de continuar com o que estamos fazendo.”1
A ideia por trás do tweet é nobre. Faz alusão aos vários recordes trágicos de temperatura no planeta relacionados ao aquecimento por conta da atividade humana. É verdade que estamos colapsando a biosfera, pelo menos no diz respeito a sustentabilidade da nossa civilização. Inclusive, é bem capaz de termos passado alguns marcadores importantes, sendo inevitável que soframos algumas das piores consequências. Algumas já são sentidas, mas elas provavelmente são leves perto do que está por vir.

Mas, apesar da intenção nobre de alertar o mundo, confesso que o tweet desse pai de 45 anos me lembrou as seguintes palavras de Cioran:
“X sustenta que estamos no fim de um ‘círculo cósmico’ e que tudo irá em breve rebentar. Não duvida disso um único instante. Ao mesmo tempo, é pai de família, e de uma numerosa família. Com certezas como as dele, que aberração o fez dedicar-se a lançar num mundo condenado filhos atrás de filhos? Se prevemos o Fim, se estamos certos de que ele não tardará, se o antegozamos até, devemos esperá-lo sozinhos. Em Patmos não se procria.”2
Não é como se a questão do possível colapso climático e civilizacional fosse segredo. Ainda que não tivéssemos esse problema, ao longo do século XX, a humanidade se viu diante da possibilidade do Armageddon nuclear. Uma guerra nuclear pequena entre Índia e Paquistão já seria suficiente para colapsar a agricultura e provocar a fome de bilhões de pessoas.3 Uma guerra nuclear entre grandes potências nos levaria à idade das pedras, isso na melhor das hipóteses. Se o problema desse pai é a possibilidade da civilização global que temos chegar ao fim, então não há nada que ele possa dizer para aliviar sua culpa de gerar um filho.

O antinatalismo derivado do pessimismo cósmico não necessariamente leva em conta essas questões. Ele está atrelado ao fato da vida senciente ser uma incessante fuga de estados negativos em direção a estados positivos fugazes e ilusórios. Isso descreveria a realidade senciente mesmo num mundo onde os seres vivos não têm capacidade de refletir sobre a existência ou criar maneiras de se autodestruir, como foi na maior parte da história natural da Terra.

Por exemplo, dinossauros não refletiam sobre sua condição existencial, mas eles viviam sob o jugo da eterna fuga de estados negativos, uma luta cujo único objetivo é a perpetuação da espécie. Eles também não tinham a capacidade de auto-aniquilação. No caso de uma espécie como a nossa, capaz de produzir catástrofes absurdas que afetam todos os seus membros, questões como guerra nuclear ou aquecimento global devem ser fatoradas na análise existencial.

É claro que, se magicamente fossemos capazes de nos livrar desses perigos, ainda assim restaria a condição existencial negativa, mas o fato é que não somos capazes de nos livrar do perigo da auto-aniquilação e, portanto, tal perigo piora ainda mais a nossa condição de seres sencientes: somos capazes de inventar tragédias ainda piores do que aquelas que a natureza já nos proporciona só por existirmos.

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Patmos é a ilha grega onde João escreveu o livro do Apocalipse, o último livro da Bíblia cristã. Lá, esperando o fim do mundo, o discípulo de Jesus manteve-se isolado, sem gerar descendentes. Mesmo que não concordemos com a tese do pessimismo cósmico de que a própria vida senciente é uma constante fuga de estados negativos para estados positivos fugazes e ilusórios, vivemos sob a ameaça da catástrofe climática e, embora a Guerra Fria tenha acabado, ainda vivemos sob a possibilidade da destruição nuclear.

Para todos os efeitos, hoje, o mundo inteiro é Patmos.


por Fernando Olszewski

Notas:
2. Emil Cioran. Do inconveniente de ter nascido. Lisboa: Letra Livre, 2010. p. 128.