É charlatanismo do pastor, sim!

Em Écartèlement, livro do filósofo e escritor franco-romeno, Emil Cioran, há uma passagem em que ele escreve o seguinte:

Os santos superiores não insistiam em operar milagres; eles os reconheciam com relutância, como se alguém tivesse forçado sua mão. A tremenda repugnância que tinham por tais coisas indubitavelmente foi causada pelo medo de cair no pecado do orgulho e de ceder à tentação do titanismo, o desejo de ser igual a Deus e roubar Seus poderes. (CIORAN)

As escrituras em Pali mostram que o Buda, apesar de admitir aos seus seguidores a existência de milagres e feitos sobrenaturais extraordinários, considerava eles desnecessários e até perigosos para o desenvolvimento do aspirante. O bom milagre, para ele, era quando um de seus seguidores (ou ele próprio) conseguia trazer alguém para o caminho da cessação do sofrimento. Todo o restovoar, andar sobre as águas, curar doençasera espetáculo vazio. O grande prêmio que o Buda "vendia" aos seus seguidores era a libertação do eterno ciclo de nascimento e morte, a conquista do nibbana. Uma passagem famosa da Digha Nikaya—ou "Coleção de longos discursos"—mostra ele se recusando a operar feitos sobrenaturais bizarros justamente por conta dessa postura.
Buda sendo atacado por Mara
O Novo Testamento traz Jesus como alguém que faz diversos milagres: ele cura pessoas enfermas, ressuscita mortos, transforma água em vinho e anda sobre às águas. Ao passo que Jesus supostamente fez todas essas coisas, uma passagem (Marcos 8:11-13) mostra que, ao ser instigado pelos fariseus a fazer milagres, ele se recusou. Algumas outras passagens bíblicas afirmam que, em certas ocasiões, Jesus comandou seus discípulos a não divulgarem seus milagres. O ponto é claro: milagres não são um show de mágica. Além disso, seus supostos feitos extraordináriosincluindo a cura sobrenatural de enfermidades gravesnão eram a principal razão pela qual ele queria que as pessoas o seguissem. O Reino que Cristo "vendia" aos seus seguidores não era deste mundo. O corpo é só uma casca e as riquezas são mais do que irrelevantes, elas são diabólicas.

Avancemos ao ano de 2020. Nosso país e o mundo hoje estão preocupados com o COVID-19, popularmente chamado de coronavírus, muito embora existam diversos outros tipos de coronavírus diferentes. No RS, um pastor evangélico neopentecostal resolveu lucrar em cima do pânico e prometeu imunizar as pessoas do coronavírus através da fé—cura habilitada pelas doações em dinheiro à sua igreja. Esse tipo de cura é oferecida o tempo todo, há décadas, por todas as igrejas neopentecostais caça-níquel do planeta Terra, desde as menores até os mega-templos. Basta assistirmos uma tarde de programação dos canais religiosos que veremos completos absurdos, como a ideia de que é possível curar viciados em cocaína e crack em menos de cinco minutos, através da expulsão de "espíritos malignos do vício". Alguns desses charlatões vestem-se como enfermeiros e médicos apesar de não possuírem treinamento profissional na área da saúde, com o claro objetivo de tapear as pessoas. Isso não é feito às escondidas, está na televisão, para qualquer um ver.

A polícia agora está investigando o tal pastor do RS por charlatanismo, como se só agora a linha da decência e da legalidade tivesse sido cruzada. Não, a decência e a lei já foram estilhaçadas há muito tempo, e boa parte daqueles que deveriam cair em cima desses charlatões—profissionais da área da saúde, que deveriam protestar contra curas falsas, e profissionais que trabalham para o Ministério Público a nível estadual e federal—são, eles próprios, crentes. Não é um bom sinal que pouco ou quase nada seja feito para barrar a enganação movida a dinheiro promovida por essas pessoas. Até quando a livre propagação de curas falsas (que custam dinheiro, logo são ainda mais fraudulentas) será defendida em nome do direito constitucional à liberdade religiosa?


Por Fernando Olszewski

Referências: