O julgamento de Drauzio Varella

Recentemente, Drauzio Varella, médico reconhecido pelo seu trabalho voluntário de décadas nas péssimas prisões brasileiras, participou de um quadro do Fantástico no qual abraçou uma detenta transsexual depois que ela afirmou não receber visita há 8 anos. O programa comoveu muitos espectadores por todo o país e centenas enviaram cartas de apoio à detenta. Parecia que finalmente uma reportagem fora capaz de mostrar os sofrimentos dos presos de uma forma que tocasse o coração dos brasileiros, algo difícil, já que boa parte deles adere ao credo do "bandido bom é bandido morto" ou, no mínimo, sofrendo em masmorras, mesmo se o bandido for um mero ladrão de galinha.

A clínica do Dr. Agnew, pintura de Thomas Eakins

Dias depois, a internet descobriu o crime cometido pela detenta: estupro e assassinato de um menino de 9 anos. O crime foi bárbaro, desde o seu início até o seu desfecho, como agora podemos ler em detalhes em diversos lugares. Sobre o crime cometido por essa pessoa, não há muito o que se dizer, já que, sob qualquer articulação ou formulação ética normativa, o que ela fez é imoral, errado, criminoso;  só poderíamos contestar isso se tomássemos por base teorias metaéticas como error theory, que afirma que todas as sentenças morais estão sempre erradas, ou relativismo; mas a primeira não contém muitos adeptos na academia e a segunda é praticamente indefensável do ponto de vista lógico*.

Politicamente falando, se a reportagem visava atentar para o sofrimento de transsexuais presas — e de presos em geral —, ela foi um fracasso, pois entrevistar uma detenta de alta periculosidade não gera empatia nas pessoas; e sim, a Globo deveria saber que seria impossível manter o crime cometido por ela em segredo. A emissora deveria saber que isso teria uma repercussão extremamente negativa na sociedade brasileira.

Mas Suzy, a detenta da reportagem, está cumprindo sua pena da forma como a lei brasileira pede. No Brasil, não existe pena de tortura, nem prisão perpétua, nem pena de morte. A nossa legislação não permite nada disso — aliás, a lei diz que devemos dar ao preso um mínimo de dignidade para que ele cumpra sua pena e se ressocialize, coisa que o Brasil não faz. Muitos brasileiros ficariam surpresos de saber que nos diversos estados americanos que possuem pena capital, prisioneiros que aguardam a execução no corredor da morte vivem em condições muito superiores à maioria dos ladrões de galinha presos no Brasil. É claro que os condenados lá possuem regras rígidas, muitas vezes deprimentes, mas não faltam privadas, camas, comida decente e, principalmente, eles não ficam abarrotados em celas onde só cabem uma ou duas pessoas.

E quanto ao Drauzio? Ele fez o que sempre fez ao longo de sua carreira: trouxe um pouco de alento até para aqueles que menos merecem, até para aqueles que não merecem nenhum. Parece que boa parte dos brasileiros gostaria que nossa civilização retornasse ao suplício medieval, quando mesmo pessoas condenadas por "crimes de consciência" (como, por exemplo, ser religioso de uma maneira diferente da oficial ou não reverenciar a realeza da maneira correta) eram submetidas à torturas grotescas e incrivelmente dolorosas em praça pública antes de serem executadas, para o deleite e horror de todos os que assistiam ao espetáculo. Boa parte de nós nunca se conformou com o mundo pós-Iluminista.

Sim, a Suzy cometeu um crime bárbaro e precisa ser punida com todo o rigor que a nossa lei permite; e sim, creio que a nossa lei deveria permitir um tempo de encarceramento ainda maior, dada a gravidade do crime. Mas, ao que parece, para milhões de brasileiros, não apenas a Suzy merece ser punida, mas também o Drauzio por tê-la abraçado. E, mesmo aqueles que não o consideram um criminoso por ter dado aquele abraço, enxergam ele como um monstro moral, alguém que apoia os crimes cometidos pela Suzy. Acusam-no de não ter a mesma empatia e solidariedade com as vítimas dos criminosos e com as famílias das vítimas. Geralmente, repetem o já manjado discurso de que todos os que se solidarizam com a população carcerária e pedem melhorias nas condições de vida dos detentos são fãs de bandidos e consideram eles "vítimas da sociedade" ao invés de agentes morais plenamente capazes de escolher serem "cidadãos de bem" ou "bandidos". Mas nada disso é verdade.

Drauzio Varella é solidário com seres humanos que cometeram crimes e foram presos há muitas décadas. Ele faz isso, não por desprezar a dor das vítimas, nem necessariamente por considerar aqueles presos "vítimas da sociedade" ou qualquer outra coisa, mas porque se sentiu impelido a fazer algo por essas pessoas que fizeram escolhas muito ruins, terríveis em alguns casos, e que por isso estavam confinadas em verdadeiros calabouços. O que há de errado nessa atitude, dentro de uma civilização que (supostamente) não tem pena de tortura (seja ela física ou psicológica) e morte? O que há de errado em fazer isso dentro de uma civilização cujo objetivo da prisão é ressocializar o preso, pelo menos na maioria dos casos? Nada. Não há nada de errado no que Drauzio Varella faz.

Ninguém é obrigado a fazer o que ele faz. O Estado brasileiro é obrigado por lei a dar condições mínimas de dignidade aos presos, mas em boa parte dos casos não faz isso. Não há nenhum clamor popular por conta disso, pelas razões que escrevi anteriormente: há uma parcela significativa dos brasileiros que não se conforma com o fato de que vivemos num mundo pós-Iluminismo. A prova disso é que todos nós sabemos que propostas para melhorar o sistema penitenciário brasileiro não dão votos em eleições, pelo contrário, propor a melhoria do sistema prisional brasileiro é suicídio político para qualquer candidato.

Alguns críticos da reportagem do Fantástico afirmaram que o problema não é ser solidário com detentos, mas com determinados detentos que cometeram crimes terríveis, o que significa dizer que o Drauzio precisaria analisar o crime cometido pelas pessoas antes de ajudá-las como médico, algo que vai contra o juramento que fez para exercer sua profissão, e antes de demonstrar empatia por prisioneiros que sofrem, algo que vai contra sua natureza. Segundo essa lógica, ele talvez pudesse dar um abraço num ladrão de galinha, mas não na Suzy. Se ele, sozinho, não soubesse ou quisesse distinguir entre diferentes tipos de condenados, então a sociedade supostamente teria o direito de rechaçá-lo e condená-lo moralmente. Mas quem decide os alvos de nossa empatia, senão nossos próprios sentimentos? O Silas Malafaia? O Weintraub? O Bolsonaro ou um de seus eleitores fanáticos que ainda não se arrependeu do voto?

Não penso que a decisão sobre onde devemos alocar nossa empatia deva ser feita por pessoas que são a favor da tortura, do linchamento, de prisões superlotadas e incapazes de recuperar a maioria dos presos. Entre os que defendem a volta do suplício medieval como forma de punição e o Drauzio Varella, fico com o Drauzio na hora de guiar meus sentimentos morais. Isso não é passar pano para bandidagem. Ter empatia pelo sofrimento de pessoas que estão presas não é justificar o crime, especialmente crimes hediondos. Nem ninguém é obrigado a ter empatia por assassinos e estupradores que estão presos, como é o caso da Suzy. Mas condenar moralmente alguém que enxerga a tragédia por trás da vida desses seres, mesmo a vida de um "monstro", é ter uma percepção muito rasa e simplista da nossa condição.


* Na metaética, geralmente, a posição relativista — seja ela individual, coletiva, cultural, etc — é aquela que afirma a existência de um valor de verdade para sentenças morais — é cognitivista—, mas que esse valor será verdadeiro ou falso dependendo do ponto de vista do indivíduo, da coletividade ou cultura. Dentro dessa posição, seria possível afirmar que uma sentença moral é verdadeira para uns e falsa para outros — mas isso é insustentável, pois nada pode ser factualmente verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Por exemplo, quando consideramos a sentença "torturar gatos é errado", se aceitamos que ela possui um valor de verdade, ela pode ser verdadeira ou falsa, mas nunca verdadeira e falsa ao mesmo tempo. A coisa é diferente se não considerarmos sentenças morais como possuidoras de um valor de verdade, como fazem os não-cognitivistas, mas não tratarei dessa teoria metaética aqui.


Por Fernando Olszewski