Reflexões sobre a morte em tempos de pandemia

Em uma passagem famosa de sua principal obra, Schopenhauer escreve:

“A morte é o real gênio inspirador ou Musa da filosofia, e por esta razão Sócrates definiu a filosofia como preparação para a morte. De fato, sem a morte dificilmente ter-se-ia filosofado.”
(SCHOPENHAUER)
Pintura de Zdzislaw Beksinski
Para Schopenhauer, uma força permeia toda a realidade: a Vontade. Ele argumenta que a Vontade é a coisa-em-si kantiana, o númeno metafísico ao qual não temos acesso direto através da observação do mundo. Nos seres vivos, ela se expressa como vontade-de-viver, algo que não está nem aí para o nosso conforto ou bem-estar. Seu objetivo é perpetuar-se, propagar-se. Quando observamos os seres capazes de sentir dor, os animais, essa tragédia fica óbvia: nossos sofrimentos individuais e coletivos não têm a menor importância perante a Vontade. Mesmo quando uma espécie inteira é extinta, a vontade-de-viver continua existindo nos outros animais e seres vivos.

O vírus ocupa um lugar estranho nas classificações da biologia contemporânea. Ele apresenta certas características de ser vivo, enquanto que não possui outras. Um ser vivo possui genes, é capaz de se reproduzir e evolui através da seleção natural. O vírus possui todas essas características, mas não têm uma estrutura celular, nem possui metabolismo próprio, outras características que definem seres vivos. Ele precisa de células hospedeiras para se reproduzir. Saindo do mundo da biologia e voltando às especulações filosóficas, Schopenhauer certamente caracterizaria o vírus como uma das incontáveis representações da Vontade, como todo o resto da realidade empírica também é, seja ela orgânica ou inorgânica.

A bactéria, essa claramente classificada como ser vivo, teve um longo protagonismo nas epidemias de eras passadas. A peste bubônica, causada pela bactéria Yersinia pestis, dizimou entre 30% e 60% da população europeia no século XIV. Demoraria cerca de 200 anos para a Europa recuperar o número de habitantes que tinha antes dessa epidemia. Mas, na segunda década do século XX, antes ainda da descoberta dos antibióticos, e antes do avião se tornar um meio de transporte em massa, o vírus da influenza H1N1 causou uma pandemia global que ceifou entre 50 e 100 milhões de vidas ao redor do mundo. No Brasil, morreram 300 mil pessoas, incluindo o presidente Rodrigues Alves.

Assim como todas as epidemias brutais pelas quais a humanidade passou, a atual pandemia de SARS-CoV-2 (vírus que causa a Covid-19) não extinguirá a nossa espécie. A Organização Mundial da Saúde diz que a taxa de mortalidade global é de 3,4%. Na Itália, a taxa de mortalidade está acima de 8%. Em outros países, como a Alemanha, ela não chega a 0,5%. Todas essas taxas são calculadas levando em conta o número de casos confirmados e o número de mortos. Há pelo menos um estudo que indica que a taxa de mortalidade real é próxima de 1,4%. Ele leva em conta estimativas de pessoas que foram infectadas que não foram confirmadas como portadoras, o que coloca para baixo a verdadeira taxa de mortalidade.

Peguemos a perspectiva “otimista” de 1,4%. O mundo hoje tem cerca de 7,5 bilhões de pessoas. Se 60% da população mundial (4,5 bilhões de pessoas) contrair o vírus SARS-CoV-2, ainda que morram apenas 1,4% dos infectados, serão 63 milhões de mortes só de Covid-19 num espaço curtíssimo de tempo, ainda esse ano. Vale lembrar que, em 2015, morreram 57 milhões de pessoas no total, contando todas as doenças, todas as epidemias locais, todos os acidentes, todos os homicídios e todas as guerras—e nasceram 141 milhões no total. Em 2020, então, temos a possibilidade de vermos morrer 63 milhões de pessoas por conta da pandemia mais 60 milhões de mortos por outras causas diversas. Ainda que o número seja muito menor, ainda que seja meio milhão de mortos pela pandemia de Covid-19, continuará sendo muita gente.

É por causa disso que medidas estão sendo tomadas: se nada fosse feito, mesmo 1,4% de taxa de mortalidade já causaria uma mortandade gigantesca. Apesar de provavelmente não serem suficientes, as medidas adotadas em vários países, inclusive no Brasil, contribuem para que o pior cenário não ocorra, muito embora muitas vidas ainda serão perdidas.

Independentemente de como tudo ocorrerá — independentemente de conseguirmos isolar o vírus (e morrerem alguns milhares ou centenas de milhares) ou de não conseguirmos (e morrerem alguns milhões) —, a presença da morte está muito mais clara nos dias atuais. Uma pandemia acaba sendo mais democrática do que violência urbana, pois apesar dos ricos inicialmente terem acesso a leitos de sobra, chegará um momento no qual os leitos estarão cheios, inclusive na rede privada, visto que tanto o sistema público de saúde quanto o particular estarão saturados. A morte estará em evidência para todos, até para aqueles que mais conseguem evitá-la normalmente. Será impossível nos escondermos dela, tal como ela tem ocorrido em certas regiões da Itália, onde corpos começam a empilhar.

É um dado estarrecedor sobre nós humanos: nós evitamos pensar na morte a qualquer custo. É considerado mórbido. Essa rejeição é recorrente em diversas civilizações, desde a antiguidade, principalmente no Ocidente. Isso ocorre até hoje, apesar de terem existido ao longo da história filosofias, grandes religiões e seitas menores que tiveram como seus principais objetivos a contemplação da morte. O próprio movimento do asceticismo dentro de algumas religiões visava justamente o desapego da matéria e o preparo para uma realidade considerada superior — do budismo na Índia e na China, ao catolicismo e ortodoxia cristã no Oriente Médio, norte da África e Europa.

Epicuro (341 a.C.–270 a.C.), em sua Carta sobre a felicidade (a Meneceu), escreveu o seguinte sobre a morte:
“Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade. Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo, portanto, quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado. Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos.”
(EPICURO)
A ideia aqui é de que a morte não deve ser vista como um mal pela pessoa que a teme para si. Tudo bem que soframos quando os outros morrem, mas não deveríamos temer a nossa própria morte, pois quando a morte vem, nós não existimos mais. Isto é: por não existirmos quando morremos, a nossa morte não é nada para nós. O filósofo sul-africano, David Benatar, discorda. Ele menciona Lucrécio, discípulo de Epicuro que avançou o argumento de seu mestre. Lucrécio afirmou que, já que não nos sentimos mal pelo período de nossa não-existência anterior ao nascimento, também não deveríamos nos sentir mal pelo período de não-existência que virá depois de terminadas as nossas vidas.

Benatar argumenta que morrer não é o mesmo que nunca ter nascido. Seu ponto é de que a morte é o último mal de uma série de males que existem na vida humana. Antes disso, porém, ele lembra que para aqueles que creem que há vida após a morte, o argumento epicurista simplesmente não cabe. Mas o próprio Benatar adota a visão de que, após a morte, a nossa consciência deixa de existir. Contudo, apesar disso, ele não considera a morte como sendo um evento neutro, discordando do epicurismo. Para mostrar que a morte é sim um mal, um dos argumentos utilizados por Benatar é a intuição comum de que, ao matarmos uma pessoa, causamos um mal à ela, privando ela de sua vida e  de seus interesses. Se a morte fosse realmente nada para quem morre, seria possível argumentar que o assassino não cometeu mal algum.

Há pormenores na argumentação de Benatar contra a visão epicurista da morte, e ele próprio chega a admitir que não possui uma resposta definitiva e arrasadora. Porém, ele termina afirmando que, ainda que não possamos considerar a morte um mal, pela visão epicurista a morte também nunca pode ser considerada um bem. Ou seja: por pior que uma vida seja, a morte nunca pode ser vista como algo bom para a pessoa. Um exemplo que podemos dar é o do paciente terminal com idade avançada sofrendo dores horríveis no leito de morte, visto que a morfina já não faz efeito. A morte dessa pessoa, para o epicurista, não é ruim e nem boa, já que não priva ela de nada, nem mesmo da dor.

O epicurista, para Benatar, precisaria explicar como uma vítima de assassinato, depois do ato estar perpetrado, não sofre um mal (afinal, um morto não é nada, não sente nada, etc). A explicação de que não é o morto que sofre o mal, mas sim a sociedade ou os entes queridos da vítima, não é suficiente para explicar porque matar alguém é causar mal à essa pessoa. Ao dizer que o morto não sofre mal algum, mas sim a sociedade ou seus entes queridos, o defensor da visão epicurista continua sem explicar como a vítima pode ser considerada uma vítima de fato. O epicurista também teria que explicar como que um moribundo sofredor não se beneficia ao morrer. Benatar dirá que a vítima do assassinato sofreu um mal, pois ele argumenta que morrer é um mal. Ele também dirá que o moribundo sofredor, ao morrer, é livrado de um grande fardo (das dores físicas e do sofrimento inevitável) — muito embora a morte seja um mal para Benatar, ela seria o mal menor no caso do moribundo, viria como uma “libertação” de algo ainda pior.

Alguns séculos depois de Epicuro, Sêneca (4 a.C.–65 d.C.), preceptor do jovem Nero (que viria a condená-lo à morte anos mais tarde), também meditou sobre a morte. Ele escreveu em suas cartas para Lucílio que a morte vem diariamente, que todos os dias que ficam para trás estão mortos para nós. Quanto mais o tempo passa, menos tempo nos resta, pois todo o tempo que passou já morreu:
“Tudo na existência que ficou para trás pertence à morte.” (SÊNECA)
Ele, como Epicuro, também não considera a morte como um terrível mal:
“Desse modo, torna tua vida agradável abandonando toda a preocupação com ela. Bem algum é útil a seu dono se seu espírito não estiver preparado para perdê-lo. Ora, a perda menos dolorosa é a perda de algo de que não se sente falta. Logo, encoraja-te e te fortalece diante de situações que podem acontecer mesmo aos mais poderosos.”
[...]
“Não sou tão inepto a ponto de seguir a esta altura a cantilena epicurista e de afirmar que é infundado o medo do mundo inferior, que Íxion não é revirado na roda, que a pedra nos ombros de Sísifo não é empurrada na direção contrária, que as vísceras de alguém não podem ser devoradas e renascer a cada dia: ninguém é tão pueril a ponto de temer Cérbero e as trevas e o feitio fantasmático dos que se constituem de ossos desnudados. Ou a morte nos aniquila ou ela nos liberta: se desalojados, privados do nosso fardo, coisas melhores nos aguardam; se aniquilados, nada nos aguarda, foi igualmente removido o bom e o ruim.”
(SÊNECA)
Não é só a nossa morte que deve ser meditada. Sêneca, em carta para uma mãe que perdera seu filho anos antes e nunca abandonava seu luto, escreveu:
 “Quanto funerais passam diante de nossa porta! e não pensamos na morte. Quantos falecimentos prematuros! e sonhamos com o tempo em que nossos bebês receberão a toga, serão oficiais, herdarão os bens paternos. Quantos ricos são repentinamente reduzidos à mediocridade sob nossos olhos! e jamais nos vem ao espírito que nossa própria fortuna corre os mesmos riscos.
[...]
“É cruel, no entanto, perder o filho que se criou quando ele chega à idade de homem, quando ele já é para sua mãe, para seu pai, um apoio e uma felicidade. – É cruel: quem o contesta? Mas é uma coisa humana: você nasceu somente para perder, para morrer, para esperar, para temer, para atormentar os outros e a si mesmo, temer a morte e a desejar e, o que é pior, jamais saber ao que se ater em relação às verdadeiras condições de sua existência.“
[...]
“Nada impede que seus filhos lhe rendam as últimas homenagens e que sejam eles a pronunciarem seu panegírico; mas esteja pronta a colocá-los você mesma na pira, seja em sua juventude, seja em sua idade madura, seja na velhice: pois os anos nada têm com isso, e os funerais aos quais os pais assistem são sempre prematuros. Se, conhecendo estas condições, você coloca filhos no mundo, você perde o direito de incriminar os deuses: eles não têm nenhum compromisso com você.”

(SÊNECA)
Bebendo dessas fontes antigas, o moralista francês e criador do estilo ensaístico, Michel de Montaigne (1533–1592), também tratou da morte de maneira similar. Um de seus ensaios mais famosos chama-se Que filosofar é aprender a morrer. Neste ensaio, Montaigne nos diz que viver sem meditar sobre a morte — a nossa e a dos outros — é receita para o fracasso. Por ter passagens tão icônicas, resolvi fazer uma seleção maior, que citarei a seguir:
“[...] é loucura pensar em ser bem-sucedido dessa forma. Uns vão, outros vêm, trotam, dançam, e sobre a morte nenhuma palavra. Tudo isso é muito bonito, mas quando ela chega, para eles ou para suas mulheres, filhos e amigos, surpreendendo-os de improviso e sem defesa, que tormentos, que gritos, que fúria e que desespero os dominam? [...] É preciso preparar-se para ela mais cedo. [...] Se a morte fosse um inimigo que se pode evitar, eu aconselharia empregar as armas da covardia: mas já que não se pode, já que ela vos agarra, tanto ao fugitivo e ao poltrão como ao homem de honra, [...] aprendamos a arrostá-la de pé firme e a combatê-la. E para começar a tirar-lhe sua grande vantagem sobre nós, tomemos um caminho totalmente oposto ao comum. Tiremos-lhe a estranheza, frequentemo-la, acostumemo-nos com ela, não tenhamos nada de tão presente na cabeça como a morte: a todo instante a representemos em nossa imaginação e em todos os aspectos. No tropeção do cavalo, na queda de uma telha, na menor picada de alfinete, repisemos subitamente: pois bem, e se fosse a própria morte? E diante disso nos enrijeçamos e nos fortaleçamos. Entre as festas e a alegria, tenhamos sempre esse refrão da lembrança de nossa condição, e não nos deixemos arrastar tão fortemente pelo prazer que por vezes não nos volte à memória de quantos modos essa nossa alegria está na mira da morte, e por quantos golpes ela nos ameaça. [...] É incerto onde a morte nos espera, aguardemo-la em toda parte. Meditar previamente sobre a morte é meditar previamente sobre a liberdade. Quem aprendeu a morrer desaprendeu a se subjugar. Não há nenhum mal na vida para aquele que bem compreendeu que a privação da vida não é um mal. Saber morrer liberta-nos de toda sujeição e imposição. [...] A mesma passagem que fizestes da morte à vida, sem paixão e sem temor, refazei-a da vida à morte. Vossa morte é uma das peças da ordem do universo, é uma peça da vida do mundo [...] Mudarei por vós esta bela organização das coisas? É a condição de vossa criação; a morte é uma parte de vós: fugis de vós mesmos. A existência de que desfrutais é igualmente dividida entre a morte e a vida. O primeiro dia de vosso nascimento vos encaminha para morrer como para viver.”

(MONTAIGNE)
A morte vem para todos nós, de um jeito ou de outro. Como disse certa vez um grande amigo meu: todos os que estão cursando uma graduação são obrigados a fazer um trabalho de conclusão de curso, não adianta ter medo. Da mesma forma, todos os que estão vivos são obrigados a morrer em algum momento. E, assim como muitos estudantes temem escrever suas monografias, muitos de nós tememos a nossa própria morte. A comparação não cabe, porém, quando a morte vem para aqueles que amamos e estimamos.

Por mais que tantos sábios tenham meditado sobre ela e nos dito para não termos medo, em uma época na qual ela espreita ainda mais do que o usual, é perfeitamente normal temê-la. Como diria um filósofo argentino que gosto, Julio Cabrera, o final de nossas vidas é apenas a morte pontual. Antes disso, porém, vivemos a morte estrutural, que nos acompanha desde o momento em que nascemos. A vida toda é uma grande morte.


Por Fernando Olszewski

Referências:
. SCHOPENHAUER, Arthur. The World as Will and Representation, v. 2. Nova York: Dover Publications, 1966. Tradução de E.F.J. Payne.
. Schopenhauer (Stanford Encyclopedia of Philosophy)
. Virus - Life properties (Wikipedia)
. Black Death (Wikipedia)
. Spanish flu (Wikipedia)
. COVID-19 basics explained (The Conversation)
. What is coronavirus – and what is the mortality rate? (The Guardian)
. How many people die and how many are born each year? (Our World in Data)
The top 10 causes of death (World Health Organization)
. EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu). São Paulo: UNESP, 2002. Tradução de Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore.
. BENATAR, David. Better Never to Have Been: The Harm of Coming into Existence. Oxford: Oxford University Press, 2006.
. SÊNECA. Edificar-se para a morte: Das cartas morais de Lucílio. Petrópolis: Vozes, 2016. Tradução de Renata Cezarini de Freitas.
. ______. Consolação à Márcia. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 10, n. 1, p.156-181, mar. 2007. Semestral. Tradução de Monica Seincman.
. MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. São Paulo: Schwarcz, 2000. Tradução de Rosa Freire D'Aguiar.
. CABRERA, Julio. Mal-Estar e Moralidade: Situação Humana, Ética e Procriação Responsável. Brasília: Editora UnB, 2017.